O dicionário da ciência política - Noberto Bobbio

Anarquismo - THREAD (1/6)

I. DEFINIÇÃO GERAL. — Não é possível dar uma definição totalmente precisa de Anarquismo. O ideal
designado por este termo, embora tenha sofrido notável evolução no tempo, sempre se manifestou e
manifesta como coisa realizada e elaborada, como aspiração ou como objetivo último e referencial, cheio de significados e de conteúdos, dentro da perspectiva
em que é analisado.
O termo Anarquismo, ao qual freqüentemente é associado o de "anarquia", tem uma origem precisa do
Grego anarkia, sem Governo: através deste vocábulo se indicou sempre uma sociedade, livre de todo o domínio político autoritário, na qual o homem se afirmaria apenas através da própria ação exercida
livremente num contexto sócío-político em que todos
deverão ser livres.
Anarquismo significou, portanto, a
libertação de todo o poder superior, fosse ele de ordem ideológica (religião, doutrinas, políticas, etc.), fosse de ordem política (estrutura administrativa hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos meios de produção), de ordem
social (integração numa classe ou num grupo determinado), ou até de ordem jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso geral para a liberdade. Daí provém o rótulo de libertarismo, atribuído ao movimento, e de libertário,
empregado para designar o que adere ao
Libertarismo.
Precisados os termos, por Anarquismo se entende o movimento que atribui, ao homem como indivíduo e à coletividade, o direito de usufruir toda a liberdade,
sem limitação de normas, de espaço e de tempo, fora dos limites existenciais do próprio indivíduo:
liberdade de agir sem ser oprimido por qualquer tipo de autoridade, admitindo unicamente os obstáculos da natureza, da "opinião", do "senso comum" e da
vontade da comunidade geral —aos quais o indivíduo se adapta sem constrangimento, por um ato livre de vontade.
Tal definição genérica, avaliada de diversas maneiras por pensadores e movimentos rotulados de
anárquicos, pode ser sintetizada através das palavras retomadas em nosso século, por volta dos anos 20, pelo anárquico Sebastien Faure na Encyclopédie anarchiste:
"A doutrina anárquica resume-se numa única palavra: liberdade".

II. NASCIMENTO E PRIMEIRO DESENVOLVIMENTO DO
ANARQUISMO. — O espírito libertário ou, por outras palavras, o anseio pela liberdade absoluta, é próprio de todas as épocas históricas. Pode-se até afirmar que o
Anarquismo se apresentou com semblantes heterogêneos desde a antigüidade clássica, acompanhando, de vários modos, o desenvolvimento sócio-cultural. A história dá-nos três formas diferenciadas da manifestação do fenômeno:
a) em primeiro lugar existe a manifestação de um Anarquismo a nível puramente intelectual, em autores de excepcional ou insignificante relevo que se
tornaram críticos da autoridade política do seu tempo e que discutiram a eventualidade de construir uma sociedade antiautoritária
ou, pelo menos, a-autoritária. Muitas vezes, mas não sempre, a apresentação de concepções libertárias coincidiu com propostas genericamente definidas como utopistas; b) em segundo lugar, a aspiração anárquica está ligada a
afirmações de tom mais ou menos vagamente religioso.
Entram, neste âmbito, todos os apelos milenarísticos de uma sociedade perfeita, onde a
meditação entre o humano e o divino não precisaria de
particulares supra-estruturas autoritárias e onde, mediante a eliminação destas, a sociedade perfeita poderia verificar-se imediatamente;
c) finalmente, as duas manifestações apontadas, intelectualística uma e fideística outra, foram colocadas freqüentemente em confronto em movimentos efetivos de tipo social, geralmente rebeldes, os quais, em ocasiões históricas específicas, congregavam numerosas forças sociais,
particularmente do setor agrícola, sob a forma de protesto coletivo e contestador das autoridades
políticas e das estruturas sociais existentes. Basta pensar nas freqüentes revoltas medievais dos
camponeses da Grã-Bretanha para chegarem às posições libertárias, do movimento
dos cavadores (diggers) na revolução do século XVII ou nas revoltas dos camponeses alemães liderados por Thomas Munzer rebelados contra os príncipes ou, finalmente, em numerosas expressões extremas de movimentos anabatistas.
As concepções libertárias só tiveram um desfecho irrevogável no mundo político do século XVIII, como primeira forma de reação e de união simultânea em relação ao racionalismo iluminista, provocando e aprofundando a discussão sobre o conceito de
autoridade.
Esta — e o exemplo iluminista é
exatamente o de Rousseau — é acolhida no campo político, mas posteriormente limitada e rejeitada no plano individual. A contradição ideal presente nessa relação mantém-se intacta se bem que levada a um plano de luta política efetiva, no curso da
Revolução Francesa. Nesta, o grupo jacobino, partidário maior
dos princípios da autoridade e da centralização, produziu, em seu seio, forças contestadoras e libertárias, tais como, por exemplo, os enragés (os enraivecidos) assim como,
no final do ciclo revolucionário, alguns expoentes de primeiro plano da conspiração babuvista pela igualdade.
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