1/n O SENSO COMUM ANTI-AMERICANO
Há no Brasil uma espécie de senso comum contra os EUA e seu povo. Cabe aqui, como sempre procuro fazer, fugir ao maniqueísmo. As imagens das comemorações do resultado eleitoral de 2020 dizem muito sobre aquela sociedade: seu associativismo, suas
2/n esperanças, sua vitalidade, capacidade de mobilização e, talvez algo incompreensível para nós brasileiros, o quanto prezam e exercem a democracia. Nós aqui nos ativemos à lerdeza da apuração, a uma suposta bagunça das regras, e com isso deixamos de observar o que um processo
eleitoral como esse revela sobre o país. Lá votou-se para presidente, senador, deputado, diretor de escola, auditor e contador do condado, xerife, juiz e outros tantos cargos. Não há isso aqui, e vivemos bem ser exercer essa prerrogativa. Lá não, a escolha de vários ocupantes de
vários cargos acontece junto com a eleição presidencial, elevando enormemente o comparecimento e o voto para tais "cargos menores". Talvez não haja nada mais democrático no mundo, mas o anti-americanismo maniqueísta impede que isso seja admitido. Outra coisa que a eleição revela
é a extrema descentralização do país, quem mandam são os estados e os condados. Quem organiza a votação e a apuração são os condados. Imagine-se no Brasil um conjunto de alguns municípios contíguos, escolha você qualquer conjunto de municípios, estabelecendo os locais e horários
6/n de votação, definindo os locais da apuração, as pessoas que a farão, sua remuneração e assim por diante. As pessoas são responsáveis por tudo isso, na base, no poder local, no município, no condado. Já nós aqui jamais confiaríamos nisso, achamos que se a eleição for conduzida
nacionalmente sediada em Brasília ela será mais honesta e confiável do que se fosse feita pelos municípios. São dois sistemas inteiramente diferentes. Não existe melhor ou pior, mas também não é possível dizer que lá não há democracia e participação. Pelo contrário, é maior do
8/n aqui e quiçá do que em qualquer outro país do mundo. A formação dos EUA teve essa característica: uma enorme força atribuída ao poder local, ao município e seus condados, depois aos estados e só incidentalmente ao governo federal. Não existe essa cosia de um país ter todas as
virtudes e nenhum defeito - e vice-versa. É educativo reconhecer que muitos dos valores que mais prezamos, tais como a democracia e a responsabilidade individual, são exercidos na prática pelos norte-americanos. A eleição, suas imagens e a cobertura da mídia deixaram isso muito
10/n evidente. Ainda assim é possível continuar demonizando aquela sociedade. Achando que se trata de um conjunto de pessoas perversas e imperialistas, como se sua política externa não fosse a mesma adotada por qualquer potência, como a Macedônia de Alexandre o Grande, o Império
Mongol, o Império Romano, a URSS e suas repúblicas satélites, a moderna Inglaterra e até mesmo a China no futuro, caso desbanque a posição dominante dos EUA. Isso nada mais é do que o papel de qualquer potência superior. Quem confere mais atenção a isso do que à democracia por
12/n eles exercida acaba por perder o que de mais interessante há no país. Perde de ver o que há de mais fascinante do mundo em que vivemos: o pluralismo e a vitalidade das sociedades. Um pena, pois quem não vê isso passa por essa vida sem aproveitar o que ela tem de melhor.
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LIÇÕES DA DERROTA DE TRUMP VISANDO DERROTAR BOLSONARO
quem tem escrito sobre isso, referindo-se à tal frente ampla, varre para debaixo do tapete o óbvio: os EUA são bipartidários e não há segundo turno.
No Brasil há um pletora de partidos, cada qual com seus interesses. Ou seja,
quem achar mais adequado lançar candidato, acabará por fazê-lo. Se o Brasil fosse bipartidário haveria o PT na esquerda e o PSDB ou PSL na direita. Assim, não existiria Ciro, Marina, Dino e tantos outros. Ao menos eles não existiriam fora do PT. O mesmo vale para os políticos de
direita. Como aqui estas figuras existem e cada um tem um partido para chamar de seu, quem desejar será candidato em 22, até porque há o segundo turno, período propício para as alianças (ou para o descanso em Paris ou outra capital europeia chique). Essas duas diferenças entre
O Glenn é indiscutivelmente um excelente jornalista. Levanto aqui apenas um ponto relevante que influencia suas opiniões: ele é - no fundo - anti-política. Na base, no nível da militância, a política atrai muita gente que é anti-política, Glenn é só mais um desse jeito. A grande
virtude da democracia representativa é que a elite eleita não é anti-política: ela vê o mundo de maneira muito matizada, não cultiva ressentimentos, é capaz de avanços, recuos e compromissos, e não moraliza acordos e decisões. Tudo isso é impensável para alguém anti-política. A
grande vantagem da democracia representativa sobre a democracia direta é que a representação retira poder de todos os militantes anti-política (que são muitos), eles não decidem nada. Veja-se o Brexit: resultado da democracia direta. É apenas um exemplo da falta que o compromisso
FAKE NEWS E RESULTADO ELEITORAL: 1) Fake news avassaladora contra Biden nos EUA e ele venceu 2) Fake news avassaladora contra Alberto Fernandez na Argentina e ele venceu 3) Fake news avassaladora contra Luis Arce na Bolívia e ele venceu 4) Fake news avassaladora contra AMLO no
México e ele venceu 4) Fake news avassaladora contra Haddad no Brasil e ele perdeu
A conclusão é simples: fake news não define eleição, mas sim o contexto no qual ela ocorre. 1) EUA: eleição de mudança, e Biden era a oposição 2) Argentina: eleição de mudança, e Fernandéz era
era ia oposição 3) Bolívia: eleição de continuidade, e Arce era a continuidade 4) México: eleição de mudança, e AMLO era a oposição 5) Brasil: eleição de mudança, contra o sistema, e Bolsonaro era isso.
Deve sim haver preocupação com as fake news, mas não porque elas tenham o
TUDO CUSTA DINHEIRO, INCLUSIVE APURAR VOTOS
Ficamos espantados com a apuração nos EUA, mas não nos perguntamos se faz sentido gastar uma fortuna para ter uma apuração ultra rápida e eficiente. Eles têm eleições presidenciais ininterruptas desde 1824. Para eles qualquer eleição
presidencial é "apenas mais uma". Além disso, o norte-americano médio resolve o seu bem-estar econômico e social no mercado, na iniciativa privada. Dito isto, para eles não faz sentido demandar da apuração de votos o que nós brasileiros demandamos, até porque nunca se saberá com
antecedência qual ou quais estados serão decisivos. Lá a sociedade é muito rigorosa na alocação eficiente de recursos. No Brasil, por exemplo, meia dúzia de juízes impuseram que nós pagássemos uma fortuna para termos a votação com reconhecimento biométrico. Nunca perguntamos se
A IMENSA CAPACIDADE DE CORREÇÃO DE RUMOS DA DEMOCRACIA - VIVEMOS EM UM MUNDO FANTÁSTICO
Há quatro anos a elite do Partido Republicano e o eleitorado dos EUA elegeram Trump como um recado ao establishment: "mexam-se, vocês estão carcomidos". Compreensível, legítimo e louvável.
Trump não funcionou. Passados quatro anos a mesma democracia (INSTITUIÇÕES) permite defenestrar Trump. Mais do que isto, possibilita neutralizar os radicais e oportunistas à esquerda, Bernie Sanders, e à direita, Trump, abrindo caminho para um moderado do sistema. O resultado é
absolutamente fascinante. Antes que fiquem chateados, esclareço que Sanders é sim um oportunista, deixou de ser independente e se tornou democrata apenas movido pela ambição pessoal de ser candidato a presidente. O sistema fechou a porta para seu oportunismo, isso foi resultado
O INCOMPREENSÍVEL ESTADOS UNIDOS
Uma coisa que o brasileiro não entende sobre a eleição de lá: quem decide como o presidente será escolhido são os estados. Acontece assim por causa da força da federação. Por isso os estados definem as regras de registro eleitoral, de registro de
candidaturas, horário de votação, regras da votação antecipada, forma de contagem de votos e assim por diante. Para nós, que fomos socializados sob a centralização de um Tribunal Superior Eleitoral, isso transmite a ideia de bagunça, de anomia. Não é. Por outro lado, quando eles
olham o nosso sistema, não entendem porque meia dúzia de juízes decidem como votam 26 estados e mais de 100 milhões de eleitores. Decidem no sentido de definirem um horário nacional único, biometria no voto, etc. São apenas sistemas diferentes que gozam de legitimidade junto a