O século XVI inglês assistiu a um debate muito interessante sobre a capacidade das mulheres governarem. Quando o rei Henrique morreu em 1547 seu filho Eduardo virou Rei, mas adoeceu e morreu logo. Antes, manobrou para que sua meia irmã, Maria, que era católica, não assumisse 🧶
indicando como sucessora lady Joana Grey. Maria, no entanto, não estava pra brincadeira, usurpou o trono, decapitou Joana e tornou-se, salvo engano, a primeira mulher a ser rainha da Inglaterra. Tava com a mão na massa mesmo queimou bem uns 300 protestantes adversários 🧶
A ala crítica à Maria começou a caracterizar o seu reinado como um flagelo de Deus e o núcleo de sua argumentação estava na ideia de que uma mulher não poderia ser rainha, 🧶
isso seria uma subversão da ordem do mundo, já que nele a mulher havia sido criada para servir ao homem.

Muito bem, a questão é que quando Maria morreu a sucessora protestante era Elisabeth. O que fazer com toda a argumentação que havia sido mobilizada contra a católica Maria?
A principal saída veio da velha e boa providência, esteio mais importante de qualquer discussão sobre legitimidade. Se era vontade de Deus Elisabeth deveria governar, mesmo sendo inadequada para tanto: “frágil por natureza, débil de corpo, mole de temperamento” 🧶
aqui está o que me chama mais atenção, as discussões sobre uma constituição frágil da mulher que estava Lm concretizada em seu corpo. Claro, as discussões sobre o caráter inferior, incompleto, frágil e mais propenso ao pecado do corpo feminino 🧶
são muito mais antigas. O que temos aqui é, por um lado uma aplicação dessas ideias ao exercício do poder político; por outro uma concentração no tempo e no espaço da polêmica, dada a existência de três possíveis rainhas🧶
Continuando: Deus fortaleceria todo aquele que assumisse o trono, de modo que, do mesmo modo que os adversários católicos defensores de Maria haviam dito, do ponto de vista político, Maria era homem, porque soberana🧶
Enfim, no espaço de 11 anos um debate sobre mulheres e poder foi realizado de forma concentrada na Inglaterra do século XVI. Joana, Elisabeth, Maria poderiam governar? Qual o caráter do poder que exerciam? Como seu corpo de mulher, sua carne, interferiria nisso? 🧶
Talvez esse debate já seja feito por quem discute mulheres e poder e eu esteja chovendo no molhado, ignorante que sou no assunto.

Mas fiquei pensando que uma série de questões mobilizadas contra o voto feminino no século XIX são muito parecidas. Por exemplo, 🧶
o debate sobre voto feminino na Constituinte brasileira de 1891 repete vários desses argumentos, sobre características que seriam constitutivas do corpo da mulher. Bom lembrar que os debates foram realizados 🧶
em meio aos debates que tinham como eixo o racismo científico, mas que também tentaram provar cientificamente a inferioridade intelectual das mulheres (ver Stephen Jay Gould) 🧶
Tenho claro que há muita diferença entre o poder de uma monarca no século XVI e o poder do mundo dos parlamentos modernos. Mas há analogias suficientes para fuçar no assunto e verificar se não existe uma história de longo curso que ligue este debate das rainhas🧶
com os argumentos que as sufragistas tiveram que enfrentar. Fica aí uma sombrinha de hipótese pra pesquisa, quem pegar é sua.

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19 Dec
Não é correto o argumento do PSOL de que uma candidatura isolada de esquerda não ajuda Lira, o candidato de Bolsanaro, porque afinal tem 2º turno. Segue o fio 🧶
Em primeiro lugar porque é fundamental que a candidatura da frente antibolsonaro tenha “cheiro de vitória”. Essa é a única forma de concorrer com os “milhões de argumentos” que o executivo oferece nesse momento aos parlamentares para apoiar Lira. A esquerda com Maia 🧶
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29 Nov
1. PT e PSOL começam a formar uma nebulosa com fronteiras pouco nítidas. Lula, sem condições de disputar hegemonia em duas frentes, mistura o PT ao PSOL para se concentrar em demarcar com Ciro. A nebulosa ajuda os dois, deixa o PSOL mais taludo e o PT rejuvenescido 👇🏼
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8 Nov
Média de pesquisas na Itália. A Liga de Salvini e os Fratelli d’Italia tem, juntos, 40%. A derrota de Trump foi importante, mas estamos longe, muito longe, de afastar o fantasma do neofascismo e das outras faces da extrema direita. Siga o fio 🧵
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25 Oct
Tenho um palpite, mas é só um palpite, posso estar errado. Acho que várias séries da Netflix tem refletido a erupção na Europa do nacionalismo 👇
isso pode ser visto, de forma mais óbvia, no tratamento quase que obsessivo que as séries fazem do tema da imigração. Há,
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1 Jul
Não voltaremos ao normal, nada será como antes. Mas não por escolha, não porque o velho normal não é desejável. Não há retorno possível porque uma nova realidade nascerá da interação complexa entre várias crises que se combinarão e se potencializarão mutuamente... 👇🏼
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24 Apr
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(...) Dialogou com o senso comum de sua base ao reafirmar a sua autoridade e ao apresentar Moro como alguém que está preocupado com a biografia e não com o Brasil. Busca redefinir a persona de Moro, apresentando-o como um carreirista individualista em contraposição a ele (..)
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