Em 22/07 postamos na @agencia_bori sobre imunidade de rebanho. Retomamos em forma de fio, pois ainda há ruído sobre esse conceito. À época, havia uma discussão sobre imunidade de rebanho natural e soltamos a nota: Por que a imunidade de rebanho não vai nos salvar? Segue o fio 🧶
Na discussão pública sobre o curso da epidemia de Covid-19 alguns conceitos têm sido comentados. Nos últimos dias, em especial, fala-se da imunidade “de rebanho” ou imunidade coletiva. Há, porém, uma grande confusão sobre o fenômeno e as implicações ao se atingir este limiar.
Uma das interpretações equivocadas é a de que o vírus para de circular quando se atinge a chamada imunidade de rebanho. Porém esse conceito está definido apenas para uma população inteiramente suscetível, ou seja, de pessoas capazes de serem infectadas.
Podemos aproveitá-lo para discutir algo que recebeu pouca atenção até agora: overshooting de casos, que é o número de casos que continuam se acumulando mesmo depois de se ter alcançado o limiar de imunidade coletiva.
Já o conceito de imunidade coletiva surgiu da resposta à seguinte questão:

quantos devem ser vacinados para que uma epidemia não avance em uma população inteiramente de pessoas suscetíveis?
Chamamos de R0 o número de pessoas para as quais uma pessoa infectada transmite a doença, em média, quando todos são ainda suscetíveis. A resposta é que em uma população homogênea a epidemia não progride se a proporção de pessoas inicialmente imunes for ao menos 1- 1/R0.
Na figura que segue, o gráfico mostra o número de pessoas infecciosas ao longo do tempo em uma epidemia. No momento do pico dessa curva, marcado com uma linha tracejada, o número de pessoas já atingidas pela infecção (infecciosos, recuperados e mortos) chega ao valor 1- 1/R0;
o mesmo valor que define o limiar de imunidade coletiva. A partir desse momento o número de infecciosos cai gradativamente até que a epidemia acabe. Mas até o momento em que a epidemia se extinguir, haverá ainda muitos casos novos.
Esse número de casos acima do limiar de imunidade coletiva é o overshooting de casos. No segundo gráfico, mostramos o conceito.
Qual seria o tamanho deste overshooting para o caso da Covid-19?

A resposta não é simples, porque depende de muitas particularidades da epidemia. Para avaliarmos o efeito de overshooting é suficiente uma estimativa com um modelo matemático muito usado para descrever epidemias,
o modelo SEIR (Suscetíveis-Expostos- Infectados-Resistentes). Por este modelo, se o R0 para a Covid-19 for 2,5 e, portanto, se o limiar da imunidade coletiva for atingido quando 60% da população estiver imune, o overshooting será de 20% a 30%.
Ou seja, ao fim da epidemia teríamos 80% a 90% da população infectada. Mesmo num cenário otimista de limiar de imunidade coletiva de 40% (correspondente a R0 de cerca de 1,7), o tamanho final da epidemia se aproximaria de 70% da população.
Todos estes cenários levariam a várias vezes mais hospitalizações e mortes do que as que já presenciamos.
É possível que se atinja a imunidade coletiva antes do esperado por estes cálculos (ao redor de 60%) e que o overshooting seja menor? Sim, é possível.
Há uma série de fatores que podem ser importantes na diminuição do valor do limiar de imunidade coletiva, como, por exemplo, imunidade cruzada ou heterogeneidades de suscetibilidade.
Tais fatores são objeto atual de pesquisa por vários grupos de cientistas no mundo. Existe muito por se descobrir e os resultados até agora estão no terreno das possibilidades. É importante levar isso em consideração ao se tomar decisões que afetam a vida da população.
Como o conceito de imunidade coletiva pode orientar políticas públicas?

Quando tivermos uma vacina, saberemos em qual proporção da população ela deve ser aplicada para nos mantermos acima do limiar de imunidade coletiva.
Até então, teremos que buscar outros meios de reduzir a transmissão.
Nessa situação, aguardar o limiar de imunidade coletiva é uma declaração de fracasso de uma sociedade. É encarregar a natureza de concluir a epidemia, às custas do adoecimento e morte desnecessários de muitas pessoas.
PS IMPORTANTE: A imunidade de rebanho faz sentido quando a proteção induzida por uma vacina (mesmo por uma infecção natural ) é sabidamente duradoura.
Falar de imunidade de rebanho para a infecção natural é frágil porque as pessoas, certamente, se infectaram em momentos diferentes e, consequentemente, estariam “protegidas” por tempos diferentes. Se essa proteção for pouco duradoura, a população não estaria protegida.
Hoje, já temos algumas vacinas em estágios avançados e algumas já sendo aplicadas nas populações de alguns países. Especificamente, em relação à COVID-19, ainda não sabemos se a infecção natural confere proteção duradoura.
Por exemplo, se a proteção conferida pela vacina for de curta duração, as cadeias de transmissão se restabelecem e não há imunidade coletiva.
Além disso, não sabemos se pessoas vacinadas ainda têm capacidade de transmitir a doença, caso infectadas com o vírus SARS-COV-2, possam desenvolver um quadro assintomático, o que significaria que as vacinas podem não promover a interrupção das cadeias de transmissão.
Portanto ainda não faz sentido falar em imunidade coletiva para COVID-19.

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