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10 Jan, 74 tweets, 11 min read
Faz uma thread explicando E=mc²? O que acha? Você já disse que achava que ela significava que uma massa vir… — Tô enrolando pra fazer essa #FísicaThreadBR há 15 dias (mals anon uahsauhs). Vamos lá curiouscat.qa/nickfismat/pos…
Acho que é interessante eu começar dando uma ideia de onde vem a fórmula. Eu vou mostrar uma dedução que tá errada (e falar que pq tá errada), mas que deve dar uma intuição bacana e que o próprio Einstein propôs em 1906 (Lemos, 2002)
Como sempre, as referências que eu citar entre parênteses vão aparecer no final da thread
E=mc^2 é provavelmente a equação mais famosa da Física, e uma das consequências mais curiosas (na minha opinião) da Teoria da Relatividade Restrita, que o Einstein publicou em 1905
Como é uma consequência de Relatividade Restrita, a gente precisa ter alguma ideia de Relatividade antes. Pra isso, eu preciso falar um pouquinho de Eletromagnetismo
O Eletromagnetismo na formulação que a gente usa hoje em dia tinha sido proposto pelo Maxwell algum tempo antes do Einstein aparecer. Algumas das equações mais importantes da teoria são, em notação moderna e em unidades de Heaviside-Lorentz, estas:
O rho (esse p esquisito) denota densidade de carga. Onde tem carga, tem rho diferente de 0 (e o sinal do rho denota se a carga é positiva ou negativa). J é corrente elétrica. c é uma constante com dimensão de velocidade
E é o campo elétrico, B o campo magnético.
Agora a parte mais complicada: o que são todos esses triângulos, d/dt e etc?

São derivadas. Eles descrevem como os campos mudam ao redor do ponto que você tá olhando
O d/dt indica variação no tempo. Se a componente x do campo elétrico aumenta com o tempo, dEx/dt é positivo
O triângulo com um pontinho é o divergente. Ele mede o quanto o campo diverge: ou seja, o quanto ele se afasta ou se aproxima do ponto que você tá olhando
Uma torneira tem divergente positivo, pq tem água saindo dela. A água de afasta da torneira. Um ralo tem divergente negativo: a água cai nele
Com isso já dá pra entender o que as duas primeiras equações querem dizer: o campo elétrico aponta pra longe de cargas positivas e na direção de cargas negativas, enquanto o campo magnético não aponta pra ninguém (ele não "espeta")
O triângulo com um x denota rotacional. Mede o quanto o campo gira numa direção ou na outra
Isso explica as duas últimas equações: o campo elétrico enrola ao redor de variações temporais do campo magnético e o magnético enrola ao redor de correntes e de variações temporais de campo elétrico
Tô falando grego, né? Vamos ver uns exemplos
Aqui um exemplo da primeira equação: a Lei de Gauss. As setinhas denotam o campo elétrico. Ele aponta pra longe das cargas positivas e na direção das negativas (as linhas sólidas são o potencial elétrico, que eu não mencionei aqui)
E aqui um exemplo da terceira equação: a Lei de Faraday. Quando o ímã passa pelo meio da bobina, o campo magnético muda e isso faz o campo elétrico enrolar na bobina. Isso induz uma corrente elétrica que passa pela lâmpada, que brilha
A segunda equação (eu chamo de Lei de Gauss Magnética, mas ela não tem um nome fixo) tá ilustrada aqui. As linhas de campo magnético não saem nem entram de ponto nenhum: elas sempre se fecham
A parte da corrente da última equação, a Lei de Ampère-Maxwell, é a famosa regra da mão direita: o campo magnético enrola ao redor de um fio com corrente. Eu não tenho um exemplo simples do dE/dt, mas acho que vocês já pegaram a ideia
Uma das coisas interessantes dessas equações é que elas preveem ondas eletromagnéticas. Se você brincar um pouto com elas, você chega nessas equações aqui
Elas são equações de onda. Pra quem se interessar, eu falei muito sobre equações de onda e ondas nessa thread aqui

O curioso é que esse c é a velocidade de propagação da onda, mas mais do que isso, pra aquelas previsões de campo magnético do fio e tudo mais darem certo, esse c tem que valer c = 299 792 458 m/s (isso no vácuo)
Essa é a velocidade que o pessoal já tinha medido pra luz, usando algumas ideias de astronomia (se eu não me engano, na época foi usando o movimento das luas de Júpiter ou algo do tipo, mas eu não lembro em detalhes)
Anyway, o importante é: ondas eletromagnéticas e luz se movem com a mesma velocidade, pelo visto

Eventualmente alguém percebe que a luz nada mais é do que uma onda eletromagnética
Uma coisa divertida sobre isso é que implica que a luz carrega energia e momento (no Ensino Médio chamam de quantidade de movimento), como toda onda. Mais do que isso, o Eletromagnetismo de Maxwell prevê que o momento e a energia transportados pela onda tem uma proporção bem
específica. Se E é a energia e p é o momento, então p=E/c. A gente vai usar esse resultado mais tarde
O Eletromagnetismo vai dar origem à Relatividade pq a gente nunca falou em qual referencial a gente tava trabalhando, mas mesmo assim a gente deu uma velocidade. c é a velocidade da luz em qual referencial? Se eu começar a me mover não ia ter que mudar?
Conversa vai, conversa vem, eventualmente o Einstein tem a sacada de "c é a velocidade da luz em todos os referenciais. A Mecânica de Newton precisa ser corrigida pra incorporar isso"
Tendo essas coisas em mente, vamos pro E=mc^2. Eu vou seguir a dedução, sabidamenta incorreta, que tá em (Lemos, 2000). Depois eu menciono o que tá errado (assim como o artigo faz)
Imagina que você tem uma caixa com massa M e comprimento L. Do lado esquerdo dela, tem um laser. O laser liga, emite um tanto de luz que viaja até o outro lado da caixa, onde a luz é absorvida
Como a partícula de luz tem momento, a emissão dela vai fazer a caixa dar um recuo. A situação que a gente tem são esses três estágios aqui (figura adaptada do (Lemos, 2000))
A gente vai assumir que a emissão de radiação faz a caixa perder um pouco de massa. Isso é necessário: como a caixa com o laser é um sistema isolado, não tem como o centro de massa se deslocar sem uma força externa. Vai ter que se desprender um pedaço de massa da caixa que vai
se mover pro outro lado. Esse pedaço de massa a gente vai chamar de m
Pro centro de massa ficar parado no lugar, precisa valer que

(M-m)x = m(L-x)
~eu consegui chegar nisso usando o modelo simplificado de assumir que a caixa começa com M/2 de massa na posição L e M/2 no zero, e impondo que o centro de massa fique parado. Deve ter uns argumentos mais gerais tbm
O tempo que o cilindro fica se mexendo é x/v. O tempo que a luz fica se mexendo é (L-x)/c. Os dois tempos precisam coincidir (quando a luz bate na caixa, ela para de novo). Logo,

xc = (L-x) v
Por fim, a gente impõe conservação de momento. A caixa tem momento (M-m)v pra esquerda e a luz tem momento E/c pra direita (lembra do Eletromagnetismo?). Logo,

(M-m)vc= E
Agora a gente tem

E = (M-m)vc [conservação de momento]
E = m (L-x) vc/x [pela posição do centro de massa]
E = mc^2 [pelo tempo]
Logo, a energia que a partícula transporta é equivalente a uma massa m, com uma constante de proporcionalidade c^2
Como o (Lemos, 2000) muito bem pontua, esse argumento tem um punhado de falhas
1. em Relatividade, a noção de presente é nublada. A gente tá assumindo que a caixa toda começa a se mover ao mesmo tempo, mas isso não faz sentido. É preciso considerar que uma onda elástica transfere a informação pra caixa começar a se mexer aos poucos
Por sinal, corpos rígidos em Relatividade são um assunto bem divertido. Me perguntem mais tarde sobre o paradoxo de Bell. Resumo da ópera: você tem dois foguetes amarrados por uma corda. Os foguetes aceleram juntos com a mesma aceleração. A corda rompe?
Mesmo assim, cálculos mais cuidadosos, considerando essa onda elástica, levam à mesma coisa (Lemos, 2000)
2. A expressão que a gente usou pros momentos é a expressão da Mecânica Newtoniana, não a da Relatividade!
Eu acho que isso pode até ser interessante, na vdd. A expressão completa do E = mc^2 é um pouco mais complicada, e acho que considerar isso poderia levar à expressão certinha (não tenho certeza, mas pode ser legal conferir uahaush)
Eu gostei dessa dedução porque, embora errada, ela é bem simplesinha. Me lembra um quote famoso do H. L. Mencken: For every complex problem there is an answer that is clear, simple, and wrong. [Para todo problema complexo, há uma resposta que é clara, simples e errada]
Num curso de Física, a gene vai usar demonstrações que aproveitam um arsenal matemático mais poderoso, como algumas brincadeiras com quadrivetores (Griffiths, 2017)
De toda forma, eu acho que o argumento da caixa dá uma visão do significado da equação. Energia e massa são a mesma coisa, e uma pode ser convertida na outra
Em particular, isso pode ser observado em Física de Partículas (hehe). O próton, por exemplo, é feito de dois quarks up e um down. Segundo a Wikipedia, o quark up tem massa 2.2 MeV. O down tem 4.7 MeV. O próton tem 938.3 MeV
Note que 2.2 + 2.2 + 4.7 < 938.3

De onde vem o resto dessa massa? Da energia de ligação que mantém os quarks presos dentro do próton
O Veritasium gravou um vídeo excelente sobre isso uns anos atrás. Eu acabei de assistir e recomendo demais. O áudio é em inglês, mas tem legenda em português
Isso tem outras consequências bem legais também. Por exemplo, lembra aquela história de que massa gera gravidade? Relatividade diz que energia e massa são conceitos ligados! Logo, energia também deforma o espaço-tempo
Em particular, luz tem energia, então mesmo luz, que não tem massa, deforma o espaço-tempo. Massa é só uma das manifestações possíveis da energia
Pra encerrar, eu vou ousar e jogar pra uma brincadeira simples de Gravidade Quântica
E = mc² é uma das equações fundamentais da Relatividade Restrita. A forma completa é E² = p²c² + m²c⁴, que se reduz a E=mc² quando p=0 (corpo em repouso) e a E=pc quando m=0 (luz, por exemplo)
Gravidade Quântica gira em torno de três aspectos da realidade: Gravidade, Mecânica Quântica, e Relatividade Restrita (RR). A gente não coloca RR no nome pq a gente já sabe combinar MQ com RR (Teoria Quântica de Campos) e Gravidade com RR (Relatividade Geral)
Em Relatividade Geral, uma das previsões que se tem é a formação de buracos negros. Não vou entrar em detalhes, mas o Raio de Schwarzschild, o tamanho do buraco negro, é dado por

R ~ GM/c²

(o ~ significa que eu tô ignorando fatores de 2 e coisas assim)
M é a massa do buraco negro. c é a velocidade da luz. G é a chamada constante da gravitação universal, ou constante de Newton
Em Mecânica Quântica, a gente tem o princípio da incerteza de Heiseinberg, que diz que

Δx Δp >~ ħ
Δx é a incerteza (o erro) na posição, Δp a incerteza no momento, ħ é a chamada constante de Planck normalizada
A graça é a seguinte: imagina que eu quero observar uma região de tamanho L. Pra isso, eu preciso usar uma partícula de luz que tenha momento Δp >~ ħ/L, pq eu quero que a incerteza na posição seja menor que L
A incerteza na energia da luz vai ser, segundo E = cp, dada por ΔE >~ ħc/L
Essa incerteza na energia pode levar à criação de partículas com massa dada por m ~ ΔE/c², por conta do E = mc²

Eu falei disso em mais detalhes na minha primeira thread de Física:
Até agora, a gente tem então

m > ħ/cL
Agora, se essa massa for suficiente pra criar um buraco negro de tamanho L, então a gente não vai conseguir olhar nada nessa resolução. Tentar observar algo tão pequeno ia ser proibido pq o preço de energia pra olhar cria um buraco negro, que esconde
Usando a expressão do Raio de Schwarszchild,

L > Għ/c³L
Logo, a gente só consegue observar coisas com tamanho L tal que

L² > Għ/c³
Esse comprimento é o que a gente chama de comprimento de Planck. Pra escalas muito maiores que ele, a gente pode tratar o espaço-tempo como sendo contínuo e bonitinho, como a gente sempre faz. Mas se você começa a se envolver com escalas tão pequenas, o mundo fica bem diferente
Entender como o mundo funciona nessa escala é um problema aberto. Existem várias ideias, algumas mais populares que outras, mas ninguém sabe ao certo como o mundo funciona na escala de Planck
E é aí que você entra
Bibliografia

A maior parte da thread eu admito que fiz de memória (ou seja, a fonte foram as vozes da minha cabeça), mas essas referências aqui tbm foram úteis e podem ser legais pra se aprofundar um pouco (ou muito)
1. Lemos, N. A. E=mc²: Origem e Significado. Revista Brasileira do Ensino de Física 23, 03-09 (2001).

~é, eu sei, eu citei errado nos tweets, era pra ser (Lemos, 2001)
2. Griffiths, D. J. Introduction to Electrodynamics (Cambridge University Press, Cambridge 2017)

3. Rovelli, C. & Vidotto, F. Covariant Loop Quantum Gravity: An Elementary Introduction to Quantum Gravity and Spinfoam Theory. (Cambridge University Press, Cambridge, 2015)

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