Vamos falar desse artigo que blogueirinhos, médicos "fodões" e defensores ferrenhos da "terapia precoce" andam "enchendo a boca" pra citar como demonstração de eficácia...
Tradução "Base fisiopatológica e (Ir)racional para o tratamento precoce de Sars-Cov-2. O "(Ir)" é meu rs.
Esse é um artigo de "Revisão Narrativa".
André, o que é isso?
Artigos de Revisão são uma forma de pesquisa que tenta revisar um determinado tema e sintetizar o resultado de diversos estudos, com o objetivo de fundamentar melhor um determinado objetivo. Existem 2 tipos básicos:
1) Revisão Sistemática (RS): Tipo de revisão planejada para responder uma pergunta específica e que utiliza métodos explícitos e sistemáticos para identificar, selecionar e avaliar criticamente os estudos, e para coletar e analisar os dados destes estudos incluídos na revisão.
Uma RS é considerada um trabalho original. Além de utilizar como fonte, dados a literatura sobre determinado tema, é (ou deveria ser) elaborada com alto rigor metodológico.
Uma boa revisão sistemática sobre um tratamento X, pode servir de base para tomadas de decisão em saúde.
Já uma Revisão Narrativa (RN), como esta do post, é uma publicação ampla, interessante para descrever e discutir o desenvolvimento de um determinado assunto, sob ponto de vista TEÓRICO ou contextual. Possui baixo rigor metodológico e, por isso, alto risco de viés.
As RN não informam tão bem a metodologia para busca das referências, nem os critérios utilizados na avaliação e seleção dos trabalhos. É a análise (enviesada) de artigos publicados, NA INTERPRETAÇÃO E ANÁLISE PESSOAL DO AUTOR. Por isso não é base para tomada de decisão em saúde.
Resumindo.
RS: Responde uma pergunta específica (Cloroquina é eficaz pra COVID-19?). Possui alto rigor metodológico e pode embasar condutas médicas.
RN: funciona como uma historinha didática que o autor te conta sobre um tema amplo. Não serve pra embasar condutas médicas.
Outra besteira que estão falando dessa revisão:
"O American Journal of Medicine recomenda o tratamento precoce".
Não, meu amigo, uma revista científica não recomenda nada. Ela só publica o resultado de pesquisas. Cabe ao seu (prejudicado) senso crítico interpretar o artigo.
Que fique claro, caso eu não tenha sido até aqui: Essa revisão não apresenta dados ou resultados clínicos de eficácia sistematizados. Ela mostra um agrupamento de hipóteses de baixa plausibilidade. É muito bonita e gostosa de ler, mas não diz absolutamente nada. Nem nada de novo.
A "Base Racional" (usando o termo do artigo) do tratamento precoce é entender que prescrições devem ser baseadas em resultados de estudos bem conduzidos, e não baseadas em hipóteses. Hipótese qualquer profissional/pessoa formula. Demonstrar resultados confiáveis é pra poucos...
• • •
Missing some Tweet in this thread? You can try to
force a refresh
Como vocês gostaram da última historinha que contei, vou contar mais uma.
Sabe como surgiu o primeiro ensaio clínico controlado?
Parece papo chato, mas vem comigo que vou te contar como um ensaio clínico foi capaz de mudar o destino de uma nação. Curioso?
Então segue o fio!
Em 1744, George Anson retornou à Inglaterra após uma longa navegação de 4 anos. Foi um retorno triunfante após uma batalhas navais contra a Espanha. Apenas 4 de seus tripulantes morreram nesses embates. Porém cerca de 1.000 deles morreram por uma doença conhecida como escorbuto.
O médico William Clowes, que serviu a frota da rainha Elizabeth a descreveu:
"As gengivas apodreciam até as próprias raízes dos dentes, seu hálito tornava-se pestilento. Pernas frágeis e fracas, cheias de dores e feridas, com manchas roxas e avermelhadas".
Uma doença assustadora.
Vamos finalmente entender por que precisamos de ensaios clínicos randomizados para dizer se um tratamento funciona?
Spoiler: Não é médico famoso, político ou "tradição milenar" que garante essa eficácia.
Vem comigo que vou te contar uma historinha legal nesse fio.
Você certamente já ouviu falar de um "tratamento" bizarro de antigamente chamado Sangria. Ele consiste basicamente em cortar a pele, romper vasos sanguíneos para curar qualquer tipo de doença.
"Nossa André, que absurdo, quem é o idiota que acha que isso funciona?
Já chego lá...
A sangria começou lá na Grécia Antiga. Achavam que doenças eram causadas por desequilíbrio entre 4 fluidos: sangue, bile amaralea, bile negra e fleuma.
Como o sangue era associado à boa disposição, quando alguém ficava doente, pensavam que era porque o sangue tinha estagnado.