O Haiti é aqui: a Minustah e a ascensão do fascismo brasileiro

Com o assassinato de Jovenel Moïse, novamente os olhos mundiais se voltaram para o Haiti e a sua situação de tensão social. Nesse enredo, o Brasil tem um grande papel, que, como boomerang, não ficou só no Caribe. 👇🏾
Em 2004, o líder popular e padre da teologia da libertação, Jean-Bertrand Aristide é alvo de um golpe de estado e sacado do poder a força, assim como havia ocorrido em 1991. Com participação dos EUA, França e UK, ele é sequestrado e enviado para a República Centro-Africana. 👇🏾
Diante dos protestos populares, o Conselho de Segurança das Nações Unidas descreve a situação do Haiti como uma “ameaça à paz e segurança internacionais e à estabilidade do Caribe” e passa a Resolução 1542, criando a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti. 👇🏾
A justificativa era a manutenção do “ambiente pacífico, constitucional, seguro e estável.” Em setembro de 2004, tropas da Minustah desembarcam no Haiti lideradas pelo general Augusto Heleno, do Brasil, país que passaria a comandar as “forças de paz” até o ano de 2017. 👇🏾
Como descreve Miguel Borba de Sá, alegando uma nova forma de intervenção humanitária por meio do “o jeito brasileiro”, de suposta proximidade entre Brasil e Haiti (cultura, criatividade, herança africana, bom-humor, humildade, vocação pacífica e solidária, empatia),... 👇🏾
os governos petistas buscaram construir a legitimidade e a imagem de “sucesso” da operação. A despeito desse diplomacia militar a la Gilberto Freyre, a realidade foi outra. Sob tutela e supervisão dos EUA, o Brasil ficou incumbido de não permitir o retorno de Aristide ao poder.👇🏾
A Missão deixou como legado a produção de novos conflitos, mais de 30 mil mortos em decorrência da epidemia de cólera (doença erradicada no país no século XIX e trazida pelas tropas da ONU)... 👇🏾

brasildefato.com.br/2017/09/01/est…
cerca de duas mil denúncias de estupro e abuso sexual (300 envolvendo crianças), a contaminação do Rio Artibonite (principal curso de água haitiano) e uma escalada da violência. O Massacre de Cité Soleil, em 2005, comandado por Heleno, era prenúncio do terror dos próximos anos.👇🏾
No Brasil, o ricochete da Minustah veio a cavalo. Ela serviu de laboratório para técnicas de violência e controle populacional, como UPPs, intervenções militares, o uso de material de guerra (caveirões, helicópteros, tanques, fuzis e granadas) e o disciplinamento das tropas. 👇🏾
Tudo sob o slogan humanitário de “reestabelecimento da paz”. Um exemplo crucial. Em 2010, na megaoperação no Complexo do Alemão, com a filmagem do extermínio de jovens para todo o Brasil, 60% dos soldados haviam passado pelo Haiti. 👇🏾

revistaforum.com.br/brasil/relembr…
Mas mais do que isso: a Missão empoderou novamente os militares na política brasileira, escanteados desde o final da Ditadura Militar, os quais passaram a se articular a partir do chamado “Clube do Haiti”.

brasildefato.com.br/2019/03/18/fan…
No governo Bolsonaro, além do Gabinete de Segurança Institucional da Pres. da República, comandado por Heleno, mais quatro Ministérios, quatro Secretarias Estratégicas e o Assessor Especial do Presidente no STF são ocupados por oficiais que estiveram no Haiti. 👇🏾
Ou seja: a presença imoral do Brasil na Ilha Caribenha ajudou a reorganizar de maneira silenciosa a ala militar que avalizou o golpe de 2016 e sustenta o atual governo neocolonial de Bolsonaro, submisso a Washington. 👇🏾
O Brasil poderia ter agido diferente? Poderia ter realizado de fato uma política Sul-Sul?

Desde março de 2004, a Venezuela atacou a intervenção internacional no Haiti. Logo após o golpe, ofereceu asilo a Aristide e não reconheceu o governo instaurado pelas Nações Unidas. 👇🏾
Chávez passou anos denunciando as violações e confrontando as posições de países da região, como Brasil, Chile, Argentina e Bolívia, todos com tropas estacionadas no país caribenho. Ele costumava lembrar a dívida de liberdade que toda a América Latina tinha com o Haiti. 👇🏾
Em 2006, com a chegada de René Préval (antigo aliado de Aristide) à presidência, houve uma aproximação política entre Haiti e Venezuela. Mesmo com a pressão de Washington, a diplomacia haitiana buscou construir novas alianças para sair da sinuca de bico em que estava. 👇🏾
Dessa aliança com Caracas, o Haiti tornou-se observador constante nos encontros da ALBA, foi alvo do projeto PetroCaribe (com fornecimento de petróleo e infraestrutura abaixo do custo) e teve sua dívida por combustíveis perdoada pela Venezuela. 👇🏾
Essas relações se tornariam instáveis a partir de 2011 com a presidência de Michel Martelly, eleito de maneira controversa e sob a intervenção da OEA, e, mais recentemente, com o bloqueio imposto por Trump sobre Caracas, dificultando operações da Venezuela no mar do Caribe. 👇🏾
O bloqueio norte-americano acentuou a crise energética haitiana, colaborando com o crescimento da instabilidade.

Desde então, seja com Michel Martelly ou Moïse, as presidências foram marcadas pela fraude eleitoral, violência, corrupção e submissão a interesses externo. 👇🏾
Diante de tudo isso, o evento de ontem pode ser visto à luz do papel cumprido pelo Brasil no Caribe, bem como serve para entender os descaminhos da nossa democracia. Porém, parece que parte da mídia ainda não entendeu, dando voz a quem não deve como especialista em Haiti.👇🏾
Para aqueles que querem entender mais os vínculos entre Minustah, Haiti e a ascensão do fascismo brasileiro, recomendo novamente a tese de Miguel Borba de Sá, "Haitianismo: colonialidade e biopoder no discurso político brasileiro". 👇🏾

Disponível em: maxwell.vrac.puc-rio.br/37787/37787.PDF

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Marcos Queiroz

Marcos Queiroz Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @marcosvlqueiroz

7 Jul
Quando o mundo despertava dos horrores do nazismo, os haitianos ainda pagavam a sua dívida pela Independência. Antes de compartilharmos discursos e representações fáceis sobre o "país catástrofe e obtuso", que tal pensar o que o Haiti revela sobre o imoral da história humana?
Em 1825, em troca do reconhecimento diplomático e sob canhões, a França impôs a dívida da independência. Enviaram notários para contar cada centímetro, cabeça de gado, escravo, ferramenta, propriedade e etc "perdidos" com a Revolução Haitiana. 👇🏾
Isolados e com a economia arrasada pela guerra, o Haiti recorreu a bancos franceses, que impuseram taxas e juros criminosos. O dinheiro saia dos cofres desses bancos direto para o tesouro francês. Ou seja: negros enriqueceram europeus pagando pela sua liberdade e soberania. 👇🏾
Read 10 tweets
7 Jul
Para todos os que estão interessados no Haiti hoje: corpos negros têm algo a dizer não só na morte.

É importante questionar como nossa atenção seletiva, em momentos de assassinatos e golpes de estado, faz parte do jogo maior do colonialismo e do racismo. 👇🏾
Trouillot, historiador haitiano, falava que a Revolução Haitiana era uma evento impensável. Impensável não só pelo imaginário racista da época, que rejeitava a possibilidade de escravos reivindicarem em massa sua humanidade, mas impensável também nas narrativas posteriores. 👇🏾
Essas narrativas enfatizavam que um país formado por negros jamais poderia ser soberano e democrático. Tais narrativas apagavam o fato de que a soberania negada não tinha a ver com a "raça" dos haitianos, mas com a continuidade do colonialismo. 👇🏾
Read 4 tweets
24 Jun
O vídeo da sinhá reclamando de não ter uma trabalhadora doméstica nos EUA é didático: a burguesia brasileira odeia direitos sociais (como creche, educação, saúde, garantias trabalhistas) para sempre ter uma mão-de-obra precarizada e barata disponível para os seus caprichos.
Lembrar que isso não é traço individual da dondoca, mas projeto de país que remonta à escravidão. Basta lembrar que na véspera da Abolição, os senhores constrangeram acesso à terra e despejaram imigrantes no país justamente para achatar os salários do nascente trabalho livre.
É o que venho dizendo: o neoliberalismo é uma reatualização do ethos escravocrata na atual quadra do capitalismo. Os liberais arautos da "modernização da economia brasileira" mais parecem antigos senhores que citavam Adam Smith para defender a legitimidade da propriedade escrava.
Read 7 tweets
18 Jun
O @_makavelijones já fez um vídeo que sintetiza muito do que penso sobre 2013. Mas ainda gostaria de escrever um texto apenas com minhas memórias de Facebook. Essa é uma das que mais gosto: quando os liberais agiram como fascistas e começaram a expulsar os partidos dos atos.
Entre esses liberais, estavam membros de um grupo do movimento estudantil da UnB, criado por um sujeito que hoje circula por aqui como razoável.

Mais convicto, repito a pergunta: qual o modelo de democracia idealizado por esse liberalismo? A vitória do fascismo é a resposta.
É bom lembrar que o grito de "fora partidos" não surgiu do nada nas marchas: ele foi gestado em diversos contextos, especialmente em eleições de DCE, quando chapas da direita liberal surgiam com os grandes lemas do "apartidarismo" e do "rechaço à política".
Read 8 tweets
17 Jun
Lima Barreto, furtos de bicicleta e os inocentes de Botafogo

Negro e suburbano, vivendo o racismo institucionalizado da Primeira República, o escritor Lima Barreto tinha uma relação ácida com os bairros ricos e brancos do Rio de Janeiro. Entre eles, um em especial: Botafogo. 👇🏾
Bairro do mais recente e famoso ladrão de bicicletas do Brasil (o branco Igor Pinheiro), Botafogo expressava o descompasso da nossa modernização, esculpida no concreto urbano. Preto sai (para as periferias), branco fica (no centro e zona sul).👇🏾

Fonte: anpuh.org.br/uploads/anais-…
Nas obras de Lima, sempre houve a sagacidade de compreender como a urbanização implicou uma articulação entre classe, raça e território, na qual as remoções forçadas e a criminalização dos subúrbios aprofundou o estereótipo do negro como "bandido". Livres sim, mas subcidadãos. 👇🏾
Read 13 tweets
17 Jun
Um país que até pouco mais de um século vivia na escravidão. Um país que há pouco mais de duas décadas contava em minutos quanto demorava para um brasileiro morrer de fome.

Delinquente e sociopata. Você que legitimou isso também o é. Odeiam o Brasil.

Não tem como ver esse tipo de coisa e o sangue não revirar. É isso que o liberalismo brasileiro sempre produziu: criminosos antipovo, ausentes de empatia, que inventam qualquer absurdo teórico para legitimar a miserabilidade alheia. Essa gente merece a lata do lixo sem dó.
O que esse delinquente está falando é nada mais que o racismo permanente de intelectuais colonizados. O europeu, por condições específicas (e ignorando aspectos “básicos” como o imperalismo), é mais resiliente e superior. O brasileiro é o preguiçoso e adepto da luxúria.
Read 4 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!

:(