Sobre autodiagnóstico de autismo: é muito perigoso falar sobre esse tema apenas no "é bom" ou "é ruim", porque as pessoas usam essa única palavra para mil significados. Autodiagnóstico pode ser hipótese, pode ser certeza. Então quero explicar um pouquinho sobre como é isso:
A maioria dos diagnósticos de autismo começam com uma suspeita. É uma suspeita pessoal, da família (mães, principalmente), colegas de trabalho, etc. Mesmo quando não se tem o nome "autismo", a busca é feita já sabendo que existe alguma coisa que não tem nome.
E justamente por ser comum, o que eu prefiro chamar de autoidentificação é o começo comum entre autistas já diagnosticados. Ouviu sobre autismo em algum lugar, leu em algum lugar na internet, assistiu algo e disse: "é isso!". Isso é um problema? Depende do que você faz com isso.
Não é problema porque, como já disse, quase sempre surge de uma suspeita, de uma angústia e de uma incompreensão que é material, é real. Mesmo que não se trate de autismo, identificar que existe alguma coisa com você só ocorre porque há um contexto que te indica isso.
E se isso explica suas dificuldades, se essa descoberta te traz paz na vida pessoal, quem sou eu ou você para condenar ou apontar o dedo? Apenas identificar o próprio autismo não dá acesso a nada específico que possa te trazer danos diretos e danos aos outros. Por outro lado...
O autodiagnóstico de autismo é um problema quando sai da esfera privada e vai para a esfera pública, porque 1) Instaura um clima de desconfiança na comunidade; 2) Tira o foco da discussão mais importante sobre avaliações adequadas de autismo, que é acesso a políticas públicas;
3) Ajuda a construir a (errada) noção simplista de que "autismo tá na moda"; 4) Transforma o diagnóstico do autismo em apenas uma questão de validação social. Se a sua experiência com o autismo se transforma em produção de conteúdo, isso é responsabilidade a arcar.
Isso porque, neste sentido, a sua experiência com o autismo ganha uma dimensão coletiva - pela informação, pela experiência, por outras pessoas se verem dentro do que você diz. É mais crítico ainda em tempos de desinformação e fake news.
Apesar dos ataques de alguns familiares e profissionais, a gente sabe que muitos autistas diagnosticados ganham "biscoito" sim falando de suas experiências. E eu mesmo já presenciei gente em situação de autodiagnóstico dando palestra ocultando que a hipótese não foi confirmada.
Outra questão que muitos argumentam: quem melhor me conhece? Eu mesmo ou um profissional? Bem, eu sei melhor sobre meus primeiros anos de vida ou a minha mãe? Não é tão simples assim. Não conseguimos ter uma previsibilidade completa sobre toda nossa vida sem cair em vieses.
Por isso avaliações adequadas de autismo costumam envolver uma equipe multidisciplinar, longas sessões, conversas com familiares e amigos. Resumindo: é caro. E toda a energia gasta pra discutir autodiagnóstico poderia estar sobre como isso poderia ser oferecido no SUS.
E a discussão é muito mais difícil do que parece. Além de ser caro, como esse formato de avaliação de autismo se encaixaria em consultas do SUS com menos de 20 minutos? Pois é. E tem outra questão sobre a desconfiança social no autodiagnóstico de autismo: (+)
Não podemos esquecer que o autismo, especialmente aquilo que chamávamos de Síndrome de Asperger antigamente, representou bem toda uma geração impulsionada pela cultura geek/nerd na década de 2000. Virou tema de séries, filmes, se tornou a deficiência mais "pop" lá fora e no BR.
Por isso, a desconfiança não é de outro mundo, da mesma forma que o autodiagnóstico é um tema que é muito dividido entre autistas. Se você ver alguém dizendo que autistas são em geral extremamente a favor ou contra autodiagnóstico, essa pessoa não sabe do que está falando.
Por fim, o tema do autodiagnóstico é o ápice de outra discussão sobre o autismo: é um transtorno ou uma identidade social e cultural? Quem abraça essa falsa dicotomia de bem contra o mal vai ficar se matando até a eternidade sobre isso. Isso me dá preguiça, sinceramente.

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