Alguns pensamentos/confissões, se quiserem vir nesta mini viagem comigo: há um ano, a baixa de Beirute, o centro histórico, os bairros boémios dos remediados, os arranha-céus dos ricos e as casas ilegais e mal construídas dos pobres ficaram submersos numa quantidade tal de pó e
… entulho que quem passasse pela primeira vez não saberia distinguir entre o restaurante onde na noite anterior ceara o Presidente e o prédio de mil beliches onde dormira o indocumentado sírio. A maior explosão não-nuclear de que há registo já foi há um ano e lembro-me de não
entender bem o que é que se estava a passar quando vi aquela mancha cor-de-rosa, densa, a subir pelo céu de uma cidade que eu adoro, e já adorava e agora só adoro mais. Quem estava lá entendeu ainda menos que eu, porque eu, nós todos, pudemos ver que tinha sido uma explosão, não
uma bomba, um avião, um canhão, um carro armadilhado, “eu sabia lá o que que era, só quando voltei para casa e vi os vídeos”, lembro-me de ouvir @hevaloyoussef dizer nesse dia, ele que chegou a Beirute para viver 24h antes de tudo aquilo acontecer.
Passou um ano. Nesse ano as pessoas viram as poupanças de uma vida esvair-se atrás das portadas de metal dos bancos que pararam de permitir a retirada de moeda enquanto a libra despencava. A Tala, que traduziu para o @expresso em 2020 quando fomos em reportagem,
já quase não pode trabalhar porque para isso precisa de internet e como só há duas ou três horas de electricidade por dia não pode aceitar traduções de conferências internacionais. Traduz coisas escritas, ganha 60 dólares por mês; namorado, médico, ganha 100…
Naqueles dias no Líbano ouvi todo o tipo de tragédias. Quem me conhece sabe que eu tenho um problema existencial com a profissão que escolhi, apesar de gostar quase para lá do que é saudável daquilo que faço da vida: acho que andamos sempre atrás do caos, e se não houver
um pobre diabo que além de ter perdido a casa também tenha perdido um olho, então parece que falhámos em trazer uma coisa boa, marcante, uma coisa que destrua a concorrência, o louco que se matou do alto da sua casa destruída, a velhinha projetada contra a parede com a força
do impacto psicopata daquela explosão. Isso, ou perto disso, deve ter acontecido, eu não vi, não queria ter visto, não sei se queria ter ouvido ou escrito isso, queria não quer ouvir isso de ninguém mas é essa a natureza macabra do meu trabalho: escutar a barbárie, o impensável,
o que faz tremer de nervos por ser tão desalmadamente injusto e essa injustiça irresolúvel. De certo um texto não resolve. A minha função é SÓ observar, ouvir e relatar. Não é de todo despertar pena, caridade, simpatia, não é de todo escrever o inaudito que mais ninguém tem.
Algumas pessoas que conheci em Beirute são extraordinárias, de facto, até pela insanidade dos seus argumentos contra este ou aquele segmento religioso mas tudo neste país é incompreensível se não se estiver sempre a estudá-lo. E estudar o Líbano só é possível se
falarmos com muitos, muitos, muitos, muitos libaneses durante toda a vida - coisa que eu não fiz e posso não conseguir vir a fazer. Posso vir a morrer sem entender o Líbano mas fui lá, escrevi, ajeitei quão bem sabia as histórias que me ofereceram e agora voltei a falar, para
o artigo que aqui está em baixo, com três pessoas que viveram este ano de grande dureza, um ano que revelou que ainda não tínhamos chegado ao fundo do buraco da corrupção, ainda não se encontrou um lençol de água límpida no Líbano, e aquela gente bem escava.
Não há culpados, os juizes caem como se isso não quisesse dizer que o sistema de castas, famílias, clãs, está a arredar para a beira do preto a imparcialidade que ainda resta em alguns membros do sistema judicial. Não se levanta a imunidade dos deputados, não há luz em Beirute.
É muito incrível, mesmo que isso me faça questionar-me e ao caminho de tudo isto, poder viajar para conhecer e relatar, conhecer e relatar, conhecer e relatar. E ter um espaço amplo, que no jornal onde trabalho raras vezes me foi negado. #reportagem #lebanon #BeirutExplosion

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Ana França

Ana França Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @AnaRFranca

15 Mar
Eu e o @TabarezH e o Nuno Botelho andámos por aí uma semanita com fins de semana incluídos a falar com sírios que vieram parar a Portugal depois da Guerra e gostava de partilhar com vocês algumas coisas que aprendi, tanto sobre jornalismo, como sobre humanos no geral:
1 - Qualquer conversa fica melhor se houver a possibilidade de passarmos uma tarde inteira com alguém, pelo menos umas boas 4 horas
2 - Todos os miúdos, certinho, direitinho, começam a esconder a cabeça nas pernas da mãe e acabam a gritar “olha, olha, olha, olha este desenho” ou “não me apanhas, não me apanhas”;
Read 15 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!

:(