Um dos maiores desafios atuais no debate sobre saúde mental gira em torno de desnaturalizar a gramática do sofrimento psíquico imposta pela psiquiatria hegemônica.

Sem fatalismo nenhum, precisamos reconhecer que, sobretudo ideologicamente, essa psiquiatria venceu.
E é importante enfatizar o caráter de imposição. O paradigma hegemônico não se estabelece dessa forma por uma questão de mérito científico. Não é porque ele dispõe de melhores categorias teóricas, descritivas e analíticas. É porque esse paradigma foi imposto pela força.
Isso faz com que, por exemplo, todo o debate sobre saúde mental esteja circunscrito a gramática psiquiátrica. Usamos os seus termos, sua métrica, sua racionalidade, seus parâmetros. Qualquer coisa que ouse romper ou criticar essa lógica é entendido como algo absurdo, inconcebível
O campo da saúde mental é, por excelência, plural e transdisciplinar. Por isso, é extremamente complicado quando o discurso psiquiátrico se coloca como superior e todos os demais saberes precisam prestar contas a ele, ou, pelo menos, submeter-se a sua lógica.
Isso tudo gera principalmente dois problemas: 1) uma certa "colonização do pensamento" e 2) uma impossibilidade de crítica, como se o discurso psiquiátrico (hegemônico, enfatizo) e suas categorias não pudessem ser problematizadas e desnaturalizadas.
Por colonização do pensamento, entendemos uma certa captura da subjetividade que passa a entender os mais diversos fenômenos da vida e da complexidade humana a partir de categorias psiquiátricas. Em outras palavras, é o que se convencionou chamar de "psiquiatrização".
Isso produz efeitos como medicalização e patologização da existência, mas, sobretudo, condiciona nossa linguagem e nossa interpretação da realidade a uma certa terminologia médica. Em última análise, o discurso médico psiquiátrico se expande para as mais diversas áreas.
Um exemplo disso é o condicionamento da própria identidade a partir da identificação com categorias diagnósticas. O sujeito passa a construir narrativas de si a partir de classificações nosológicas. O diagnóstico não é mais uma particularidade do sujeito, mas o próprio sujeito.
É como se o diagnóstico fosse o protagonista, o determinante central na construção de sua identidade, e não mais uma das várias dimensões de sua vida. A colonização do pensamento atua, até mesmo, na forma como o sujeito se apresenta e constrói sua história.
É por ter consciência do poder colonizador do discurso psiquiátrico, que Basaglia enfatizava tanto a necessidade de se colocar o diagnóstico entre parênteses. Basaglia era um ávido leitor de Fanon, e sabia muito bem que a colonização atuava, principalmente, na subjetividade.
Com isso, Basaglia jamais negou ou recusou a categoria "diagnóstico", mas alertava que o sujeito é sempre maior e mais complexo que seu sofrimento psíquico. A tentativa de reduzir e traduzir a vida humana em categorias psiquiatricas, é, segundo Basaglia, uma colonização da mesma.
O outro aspecto tem a ver com a incapacidade de crítica e desnaturalização do discurso psiquiátrico. Isso porque nossos conceitos, nossa organização subjetiva do mundo, está tão atrelada a uma terminologia médica e psiquiátrica, que é difícil romper com essa lógica.
Dessa forma, o discurso particular da psiquiatria, se generaliza e se torna um discurso universal. É assim que ele baliza os nossos critérios de verdade, de identificação, decodificação do mundo, etc. Em uma metáfora já batida, ele se torna uma lente pela qual vemos a realidade.
Esse é o desafio no momento: conseguir pensar a saúde mental para além do enquadramento discursivo da psiquiatria, sem, no entanto, abrir mão da própria psiquiatria. Ela continua sendo importante, mas não pode definir os limites da saúde mental nem impor sua racionalidade.

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23 Nov
Termos comuns na saúde mental que me causam certo ranço:

"Risco a si e a terceiros"
Não to dizendo que não dê pra entender, e claro que quando ouço, a depender do contexto, não faço problematização desnecessária. Mas acho o termo ruim.
Sinto que reforça um pouco o imaginário do "louco perigoso" — e claro, de forma alguma estou negando a complexidade que envolve uma crise. Mas acho que essa expressão tende a individualizar a crise, desconsiderando que há um contexto onde isso ocorre.
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16 Nov
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Um dos poucos espaços onde ainda se leva a sério esse negócio é na mídia. Mesmo sendo um parâmetro bem impreciso, e, podemos dizer, bem aleatório, ainda hoje se fala bastante sobre QI nos veículos de mídia. E claro, a maior parte do jornalismo ignora plenamente seus problemas.
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20 Oct
O biopoder é um regime de controle dos corpos que se vale dos discursos da saúde para a imposição de uma normatividade, de uma "moral do ser saudável". Em resumo, o discurso da "saúde" pode servir muito bem como um regime de controle material e ideológico das pessoas.
Por isso, sempre considero extremamente complicado utilizar o pretexto da "saúde" como justificativa para um padrão de comportamento ou norma. Sob a régua dos discursos do que é ou não saudável, pode estar velado um regime de normatividade.
Vale lembrar que a concepção do que é ou não saudável (corpos saudáveis, hábitos saudáveis) não se dá no vácuo. Cada uma dessas noções são formuladas em determinados contextos sociais, políticos e históricos. O que é considerado saudável hoje, não é o mesmo que uma década atrás.
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