Se tem um mês culpa que os historiadores precisam fazer é de ter ensinado para os jornalistas o termo "anacronismo".
De uma discussão metodológica sobre leitura de indícios do passado, o termo virou uma simplificação grosseira, do tipo: não posso julgar os Bandeirantes com os valores de hoje pois isso é anacronismo.
Bem, news flash para quem não é da História: desde a geração de Marc Bloch e Lucien Febvre, e já vai aí quase 100 anos, a gente aceitou que inescapavelmente proferimos julgamentos sobre o passado a partir do presente.
Tem duas linhas de discussão nesse ponto: a primeira, de que o julgamento de valor é, em certa medida inevitável. Ele pode ser contido por procedimentos metodológicos muitos, que vão desde a coleta de dados, sua interpretação e, até mesmo, a escrita.
Mas ele não é suspenso.
E isso não é coisa de marxista, não. É Weber. Então, assim, esse é o primeiro ponto da questão: os historiadores são sujeitos políticos, morais e, sua ciência inevitavelmente reconhece essa subjetividade.
E não, isso não é relativismo. Quem defendia isso, de novo, era Bloch.
Bloch determinou uma máxima interessante aqui: toda história é história do tempo presente. As perguntas que formulamos ao passado (ou aos vestígios do passado) são invariavelmente construídas no presente.
É isso inclusive que permite a história se renovar enquanto disciplina.
A galera estuda até hoje o Egito Antigo, Roma, Idade Média... novos vestígios surgem justamente a partir de novos olhares e novas perguntas sobre o passado.
E aí entra nossa discussão sobre anacronismo: como controlar o impulso de julgar o passado com os valores do presente?
Bem, entendendo que o presente não tem nenhum privilégio especial ao investigar o passado, que suas respostas são provisórias e que mesmo suas questões podem ser efêmeras.
De fato, boa parte do nosso ofício é justamente na dialética entre nossos valores em luta e os valores em luta do passado. Essas tensões são interessantíssimas, pois quebram tanto o empirismo quanto o relativismo mais ingênuos, exigindo uma constante crítica da disciplina.
Vamos falar dos Bandeirantes: não há nada de errado em analisar seus atos sobre a luz dos povos dominados, o que significa mergulhar nos julgamentos contemporâneos dos derrotados.
E esse tipo de comprometimento do historiador com os vencidos só é possível em nossos tempos.
(ou ao menos, com as ferramentas teóricas que temos hoje)
Não há nada de anacrônico em tentar entender processos violentos pela perspectiva dos subalternos. Na verdade, uma grande demonstração de anacronismo talvez seja o contrário.
Acreditar que os valores do passado eram somente os dominantes (que naturalizavam a violência contra os dominados) é uma forma de congelar no tempo uma cultura e uma sociedade a partir da sua concepção dominante. Ela é tirada de seu próprio tempo e de sua própria dinâmica.
Anacronismo, nesse caso, não é a "mistura das temporalidades", mas sim a negação do tempo na investigação do passado. Serve justamente para relativizar a violência no passado - e, muito possivelmente, legitimar ela no presente.
Um exemplo primário disso é a discussão sobre escravidão na África. Não é nenhuma surpresa que os críticos das cotas gostem tanto de argumentar que os africanos escravizavam africanos.
Para além da imprecisão, o anacronismo que serve justamente para negar o tempo e...
... relativizar as violências do presente.
Muito ao gosto de sinhôs e sinhás do nosso século XIX. Ou XXI.
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Que fascinante o texto da nova colunista da Falha, dizendo que questionar o "identitarismo" não é a mesma coisa que relativizar o holocausto porque o segundo é um fato e o primeiro é um conceito.
Não conheço a autora, mas ela tá de parabéns pela coragem em expor sua ignorância.
Eu, por exemplo, sou profundamente ignorante em física. Termodinâmica, elétrica, mecânica... Nem sei como terminei o Ensino Médio.
Aí imagina, eu com todo respeito esse conhecimento que ignoro, ganhar um espaço no jornal para escrever sobre, sei lá, construção de pontes.
Para isso, eu dou uma olhadela rápida no Google e pronto. Vou lá, escrevo minha coluna dizendo qual o melhor método para produzir pontes. Os especialistas vão rir de mim, mas gente tão ignorante quanto eu vai poder me usar como autoridade.
Mas não acho que é só isso, não. A matéria dá um tiro bom também: nossa cultura audiovisual, treinada pelas novelas, gosta da antecipação, da narrativa em capítulos. O formato do programa aqui ganhou muito de "novela", conversando com a nossa forma de ver televisão.
Pra além de tudo isso, a ideia da autenticidade dos sujeitos é muito cara nos últimos anos. Isso vende muito bem e não é só na tv.
Mas tem outros fatores aí, claro.
Pra mim, contudo, segue sendo meio misterioso. Nunca me envolvi no programa.
Esses papo de que os marxistas sabotaram a "identidade nacional" com suas aulas de história é a mesma ladainha da doutrinação marxista, com verniz de erudição.
50 anos atrás (1972) era ditadura militar, que era insuspeita em seu ufanismo e suas formas de ensinar a História do Brasil por meio das noções apologéticas de nação.do século XIX - e retomando os pressupostos racialistas do Von Martius.
Uma outra tese, essa sim mais embasada do que "os marxistas malvados não deixaram a identidade nacional se formar" é que aqui os pais da nação nunca se preocuparam muito em criar uma concepção popular de nacionalidade.
Antes da Revolução Industrial, sem subjugar a natureza por completo, muitas sociedades tinham de organizar a divisão do trabalho de acordo com as estações do ano, os ciclos de luz solar, as cheias dos rios, as chuvas...
O olhar mais comum sobre essas sociedades é que elas trabalhavam mais do que a nossa porque, afinal, não tinham dominado a natureza.
Marromenos. Conforme estudos demonstram, em diferentes épocas e sociedades, o trabalho era inconstante e, em certa escala, menor do que hoje.
Na nossa sociedade, pós-Revolução Industrial, como ensina seu Armando de Belford Roxo, não importa tempo, chuva, enchente, seca...todo mundo tem que trabalhar.
Mesmo todo o avanço tecnológico não fez com que trabalhássemos menos.
Eu gosto muito de brincar com as ideias da expectativa de progresso das pessoas. Via de regra, é uma ideologia tão poderosa que até Marx - sim, o próprio - caiu nela.
Pois é, pega lá o Manifesto Comunista, Marx novinho, todo o início do livro é ele louvando a burguesia, a classe que finalmente tirou todas as amarras da sociedade, substituindo elas por dinheiro.
Os laços comunitários do mundo pré-capitalista escondiam relações de dominação e exploração, mas somente o capitalismo ia transformar essa lógica, criando uma razão a parte de toda a vida social.