Falo pouco sobre o Canadá aqui por uma série de motivos.
Um deles é que, quanto mais eu penso sobre o país, mais eu vejo aspectos que são difíceis de encaixar com o debate público.
O Canadá é um país mal-compreendido. Existe um falso senso de familiaridade que engana muito.
Ele é parecido com os Estados Unidos, parecido com a Inglaterra, mas é ao mesmo tempo muito diferente dos dois.
Muita gente pensa em se mudar para cá, muita gente vem visitar, e isso cria uma falsa familiaridade, que esconde as diferenças.
Além disso, o debate público geralmente se foca nas polêmicas políticas do dia.
Porém, essas polêmicas se inscrevem em tendências institucionais e sociais muito mais profundas, coisas que levam décadas e séculos para mudar.
Uma das principais características, a meu ver, é a tendência profundamente legalista e cordata da sociedade canadense.
É uma sociedade que tende fortemente à conformidade, ao consenso, à cooperação social.
Isso, obviamente, tem características boas e ruins. Isso significa que..
... há uma enorme "passividade política". As pessoas não gostam de discordar e de entrar em confronto.
Parte do "politicamente correto" aqui é justamente isso. Não é sempre a militância agressiva de esquerda (o que ocorre MUITO entre universitários), mas uma espécie de "paz...
... social", uma vontade de incluir todo mundo e garantir coesão.
Obviamente, a esquerda explora essa tendência com sucesso, mas é uma característica social que vai além da esquerda.
Em paralelo a isso, há também algumas características institucionais bem fortes.
O país também tem uma alta preferência pela estabilidade e por "mudanças controladas".
Parte disso certamente tem a ver com o fato de ser a parte da América do Norte que NÃO quis se separar da Coroa Britânica.
É o país que recebeu os "loyalists", as pessoas que queriam manter..
... a ordem, a continuidade legal e política.
Nesse sentido, a própria noção de "democracia" é bem específica nesse sentido -- certamente não é democracia no sentido de participação ativa na política, mas na preservação de certos direitos.
É um país profundamente elitista...
... onde muitos das figuras centrais na política nem mesmo moravam aqui: faziam carreira no império britânico, passavam uma temporada e depois iam se aposentar por lá.
Ou seja, o governo era uma "empresa colonial", para uma espécie de classe "executivos políticos".
Em cima disso, há também o caráter mercantil do governo federal.
No fundo, o impulso unificador do país foi (e ainda é) a necessidade de garantir acesso aos mercados internacionais para os produtores de matéria-prima.
O país foi costurado por vários acordos entre províncias...
... para conectar os portos nas duas costas às diversas minas, indústrias e área agrícolas.
Há, portanto, uma classe de "megacapitalistas" que tinham um interesse direto tanto em povoar um território espaço como garantir a estabilidade legal para suas operações.
Esse é, digamos, o DNA institucional do país.
Porém, o DNA sociológico é bem mais complexo, pois esse sistema ultra-estável teve que costurar vários povos que permanecem significativamente separados.
Os indígenas é, certamente, o exemplo mais gritante. É uma situação bem diferente do Brasil, onde houve muita miscigenação. As "primeiras nações" continuam largamente separadas -- institucionalmente, economicamente, socialmente.
Mas o exemplo mais visível certamente são as comunidades franceses -- um assunto particularmente complexo, que vai bem além do Québec.
Há também comunidades miscigenadas (métis), comunidades anglófonas dentro do Québec (irlandeses que chegaram procurando um espaço...
... para exercerem o catolicismo), comunidades franceses anteriores ao Québec (acadianos), e muitas outras.
Esses povos todos têm um grau de integração muito menor do que vimos no Brasil, mantendo dialetos e até direitos históricos bem distintos.
Por exemplo, o inglês NÃO é...
... língua oficial no Québec, mas há comunidades anglófonas com escolas inglesas mantidas pela província lá dentro, assim como as escolas católicas são subsidiadas em Ontário.
Ou seja, há uma costuma imensa e complexa de direitos e compensações para equilibrar mil tensões.
Enfim, resumir tudo isso sob "direita" e "esquerda" é simplificar demais.
É uma sociedade extremamente pacífica e cooperativa, mas com divisões bem nítidas e praticamente irreconciliáveis.
A própria noção de "nação", nesse sentido, é bastante recente e está longe de ser...
... aceitada universalmente.
Lembro que alguns amigos no Québec, por exemplo, não torciam por atletas canadenses, porque achavam que eram simplesmente de outro país -- vizinhos, na melhor das hipóteses; conquistadores ilegítimos, na pior.
Além disso, a própria noção de esquerda e direita na história do país tem outra complexidade.
Por um lado, uma pluralidade da população (especialmente inglesa) continua bastante religiosa e tem uma vida comunitária muito forte, com implicação direta nas suas vidas.
Por outro, o país tem um DNA socialista bem forte, vindo pela Inglaterra que teve uma boa dose de "reformadores" sociais do pós-guerra até a emergência de Tatcher.
Por isso, o país tem um estado social bem forte, mas que cresceu sem atacar diretamente sua raiz capitalista.
Sob algumas métricas, o Canadá tem até mais liberdade econômica do que os EUA, além de ter mais "capacidade estatal", no sentido de ter um estado bem organizado e bastante racional.
Porém, isso é mantido por meio de uma centralização bem forte de poder político, o que tem...
... crescido cada vez mais.
É bastante comum um primeiro-ministro passar mais de uma década no poder.
E cada vez mais o PM tem mais poder sobre o próprio partido; o partido mais poder sobre o parlamento; os ministros sobre os ministérios, etc.
Como a sociedade é muito passiva, não se questiona diretamente essa concentração de poder.
A proteção contra abuso e corrupção é feita principalmente por meio de proteções formais (instituições, partidos oficiais, etc.).
Um último elemento: o partido não é tão bipartidário quanto os EUA. Na verdade, o partido liberal é a espécie de centro controlador do país.
Eles são às vezes flanqueados pelos conservadores, mas não é a mesma alternância entre republicanos e democratas que se vê nos EUA.
Enfim, tudo isso para dizer: a centralização de poder nas últimas semanas é preocupante, mas é apenas a continuação de um processo histórico muito antigo e difícil de ser revertido.
E, por isso mesmo, os protestos são especialmente surpreendentes.
(mil erros na escrita, mas me dêem um desconto -- tem um bebê aqui brincando e levei até uma batida de caminhão na traseira do carro hoje)
Enfim, é difícil colocar as políticas daqui na clave esquerda-direita tradicional.
O governo conservador, por exemplo, foi um dos grandes reformadores do sistema de imigração, porque garantir um influxo de mão-de-obra era fundamental para manter um mínimo de competitividade...
... com os EUA.
Além disso, os próprios liberais fizeram reformas econômicas extremamente austeras no passado -- reformas na previdência, por exemplo.
Essas reformas permitiram baixar o nível de tributação e evitar que se perdesse ainda mais capital para os EUA.
Mas, justamente por isso, é também difícil esperar grandes mudanças por parte desses movimentos populistas que estão surgindo.
Sem apoio da elite política, eles têm ainda menos espaço do que os equivalentes brasileiros. A mídia, a classe política, tudo é mais centralizado aqui.
Além disso, o impacto dessa turbulência no dia-a-dia das pessoas é mínimo.
Parte do 'pacto social canadense' é que a maioria fica longe da política e a política fica longe delas.
Obviamente, esse pacto social nunca esteve tão frágil, já que a questão das máscaras e vacinas...
... entrou na vida privada de gente que provavelmente nunca votou na vida.
A questão é saber o que esse pessoal vai fazer: vão continuar protestando, vão criar novas lideranças, um novo partido? Ou vão, talvez, apoiar um dos partidos existentes?
Está tudo em aberto.
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Provavelmente o erro mais comum de jovens ambiciosos é ouvir pessoas bem-sucedidas explicarem seu sucesso.
Com a exceção de pessoas com um nível de auto-consciência acima do normal, ninguém sabe explicar porque elas são o que são.
Quase todo sucesso é devido a uma combinação..
... de conhecimento tácito, características de personalidade e elementos contextuais.
Por definição, as pessoas não sabem explicar essas três coisas. Se você perguntar porque elas "deram certo", mesmo sem querer, elas vão criar uma racionalização disso (no sentido de ficção).
O segundo erro é procurar dominar técnicas -- nenhuma delas funciona independente do contexto.
Mas mesmo se curar desse erro não faz tanta diferença, porque a pessoa provavelmente vai esbarrar em fatores de personalidade que vão impedí-la de avançar.
O texto do Carlos Ramalhete sobre Olavo é péssimo, mas fiquei com a impressão que o autor é apenas confuso mesmo, e não mau-caráter.
Não me parece valer a pena discutir com o autor, que teve ao menos a decência de relatar mais um dos incontáveis casos de caridade de Olavo.
Mas preciso também me lembrar do que o Olavo ensinou para a gente: burrice e mau-caratismo não são excludentes.
Às vezes a burrice deixa o cara mais despeitado; às vezes o despeito deixa o cara mais burro.
O texto do Ramalhete me lembrou os textos do Martim: “olhe que absurdo esse cara; ele ajudava todo mundo, inclusive a mim mesmo, mas…” e aí segue um monte de argumentos superconfusos.
Há um ano da próxima eleição, creio que não dá para negar: a direita brasileira está em maus lençóis.
Depois do triunfalismo após Brexit, Trump e Bolsonaro, a esquerda está vencendo todas as brigas.
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Existem muitos diagnósticos sobre o que aconteceu.
Eu mesmo já escrevi muito sobre como o termo "nova direita" já antevia a bronca: a direita não tinha unidade; era apenas o grupo de antipetistas que logo começaram a se esfaquear após as eleições.
Outro diagnóstico importante foi do @silviogrimaldo ainda no começo: a direita não tem quadros e militância organizada.
Ela venceu a eleição, mas não tinha tropas para tocar a máquina administrativa e fazer o corpo-a-corpo da disputa política.