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Que tempos sombrios.

Passamos o dia em casa tentando não pirar, tentando preservar ao máximo as crianças.

Somos privilegiados: dois adultos e duas crianças num apartamento grande. Temos tudo.

Quando lembro disso, volta a piração de pensar em tanta gente só tem um quarto.
Hoje pedimos comida.

Mesmo tendo coisa na geladeira, achei que dar uma variada faria bem.

Pedimos de um restaurante familiar, conhecido, que se compromete com regras de higiene.

O dono está desesperado: se não houver pedidos, eles não têm o que comer.
E conto isso dizendo que pude variar o cardápio, que me dei ao luxo, tendo gente que nem cardápio tem, obrigados a comer o que dá para comprar.

Indigesto.

Logo depois, vi a lista de medidas do governo federal:
Ajudar instituições de ensino privado a comprar álcool gel; planos de saúde privados; ajudar empresas de transporte aéreo.

Contratar mais médicos e leitos. Nada específico para o SUS, onde o grosso da demanda vai explodir.

Bizarras as prioridades em tempos de crise.
E no meio disso tudo, não paro de pensar nos meus idosos.

Já ligou para seus idosos e amigos mais vulneráveis hoje?

Eu liguei. Dá vontade de chorar ao sentir tanto amor e sentir a distância e não saber o que vai ser do amanhã.

Ontem liguei para o Tião, amigo de minha mãe.
Tião mora sozinho, não tem filhos e a família mora no Nordeste. Tião vai fazer 80 anos e tem hábito de andar a cidade toda. Tião está só e perdido.

É um dos amigo mais distantes de minha mãe, 1ª pessoas que me pegou no colo na maternidade.

- É a doença dos velhos - diz ele.
Pedi que não saísse à rua, que pedisse qualquer coisa. Disse que farei suas compras.

Tião me respondeu pelo WhatsApp, sem condições de falar, dizendo ser só choro, estar com medo e agradecendo o gesto.

Quantos Tiões nesse Brasil afora sem ninguém do outro lado da linha?
Sei lá... escrevo segurando o choro para a filha não ver.

A gente tem que poupar as crianças dessa dor, deixar ao máximo que saibam desses tempos malucos pelos livros de histórias e pelos futuros causos contados nas mesas do café, entre risos, quando tudo for só lembrança.
E que lembranças vamos levar disso tudo?

Quero lembrar das pessoas.

Da dona Dolores, moradora de rua idosa e com demência que vive aqui em frente. Outro dia pensei: vou entrar de quarentena e não vou saber dela. E se morrer, vou saber?

E se morrer, vou lembrar de lembrar dela?
Hoje li que Governo do Estado vai criar um grande abrigo para moradores de rua no Mangueirão.

Vão ter alimentação, segurança, médicos e, talvez, uma sobrevida. Mas e depois, que vai ser deles?

Faz poucos dias falei com uma dondoca.

Eu disse:
- Temos que ajudar os moradores de rua sempre, não só nessa pandemia.

- Eu vou ajudar a minha família. Eles se viram - ela respondeu.

- Se o morador de rua da frente da sua casa pega corona, aumenta a chance da sua família ter.

A mulher se assustou ao pensar nisso.
Apelar para a humanidade não funciona? Basta apelar para a sobrevivência egoística das pessoas.

Ela saiu de lá convencida de que temos que cuidar deles, mas, mais como o sapato que tem de ser esterilizado antes de entrar em casa.

Que bom que a ajuda veio pela mão Estado.
Pode parecer que escrevo isso com uma enorme carga de desesperança e tristeza, mas não se enganem, há muita fé de que coisas melhores virão.

De tudo tiro coisas boas, pois se a gente não aprender nada com esse episódio, pode fechar o planeta terra e enterra a humanidade.
Alguns governadores poderiam ficar confortáveis, escondidos atrás da tese da competência do governo federal, mas partiram para cima para defender os seus.

Valeu @helderbarbalho e @FlavioDino, bons exemplos de luta e de que pode vir forte, sou do Norte.
Da noção de que o mundo é único e que fronteiras nacionais não existem diante de uma ameaça assim.

Ou a gente cuida de todos ou a gente não cuida da gente, seja no surto de ebola na África, seja no surto de Covid-19 na Itália.

E que venha a China ajudando quem precisar.
E tenho certeza de que a gente vai aprender a cuidar mais do próximo, seja o meu Tião, seja a milhares de Donas Dolores que perambulam pelas ruas das cidades sem eira.

Hoje só desejo voltar à normalidade e poder cumprimentar Dona Dolores, e jamais esquecer que ela existe.

Fim
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