Pra entender o tamanho do equívoco que é dar voz a negacionistas da ciência, como fez ontem a @GloboNews ao convidar Osmar Terra para um debate sobre isolamento social, precisamos de um olhar aprofundado para o tema da ignorância. Fio sobre Agnotologia, o estudo da ignorância
Ignorância não é só ausência de conhecimento, mas também o resultado de dinâmicas e conflitos políticos e culturais. Ao longo da História, a produção do conhecimento tem sido o foco de filósofos e historiadores, mas, nos anos recentes, a produção da ignorância ganhou mais atenção
Assim como o conhecimento, a ignorância pode ser produzida, intencionalmente ou não. O termo Agnotologia foi cunhado pelo historiador Robert Proctor, da Universidade de Stanford history.stanford.edu/publications/a…
Uma das táticas diversionistas clássicas dos negadores da ciência é promover debates públicos (nas redes sociais, nos veículos de imprensa, na TV) inexistentes ou inexpressivos no meio científico. Jornalistas desavisados acabam dando um verniz de seriedade a conversas fúteis
Mas então é proibido debater? Claro que não. O dissenso é fundamental à ciência e é uma realidade da vida (o consenso é muito mais raro), mas o debate precisar ser criterioso, qualificado e ético. Os debatedores precisam ser especialistas com contribuições relevantes ao tema
Esse tem sido um erro comum durante a pandemia: a falta de critério sobre o que significa ser especialista. A maioria dos médicos, por exemplo, não é cientista, e pesquisadores que não são da área da saúde não deveriam ceder à vaidade e publicarem estudos preprints sobre #covid19
Sou apaixonado por ciência e admirador dos cientistas, mas são só pessoas e precisamos exercer uma análise crítica sobre o que dizem e escrevem. Cientista só é autoridade pra falar da sua área específica de conhecimento e pesquisa
Isso porque a ciência é extremamente segmentada e, embora isso tenha lá os seus problemas, é garantia de eficácia, rigor e estabelecimento de normas. Debates vazios são perigosos: estudos de neurociência cognitiva mostram como #fakenews “grudam” na cabeça niemanlab.org/2019/11/galaxy…
Paleontólogo não é fonte pra falar de #AlteraçõesClimáticas e estatístico pode ser ouvido pra falar de modelagem, mas não necessariamente recomendar ou não o lockdown. Você aceitaria ser operado do coração por um ortopedista?
O fascinante ao estudar a Agnotologia é que a gente passa a entender que a construção do conhecimento - e da ignorância - é um processo coletivo do qual participam todos: cientistas, jornalistas, o público. Seria lindo, não fosse por um detalhe: há gente mal intencionada no mundo
A pesquisadora @NaomiOreskes (sigam!), de @Harvard , revelou as táticas diversionistas dos negadores da ciência no livro Mercadores da Dúvida, do qual é coautora com @ErikMConway . A leitura é quase obrigatória: amazon.com/Merchants-Doub…
O documentário também pode ser uma boa introdução ao tema: e mostra que o trabalho de investigação dos historiadores da ciência revelou em detalhes as táticas diversionistas da indústria do tabaco
Os caras sabiam que o cigarro estava associado ao câncer de pulmão desde a década de 1960, mas plantaram a dúvida na cabeça das pessoas. Chegamos ao ponto chave: a dúvida como instrumento de disseminação de desinformação (meias verdades) ou mentiras danosas à sociedade
A indústria compreendeu que, para o consumo, não é preciso uma certeza científica irrefutável. A frase célebre, extraída de um memorando interno da gigante do setor Brown & Williamson, é auto explicativa: “a dúvida é o nosso produto”.
Pra assegurar o sucesso da tática, foi feito de tudo: milhões de dólares gastos pra financiar pesquisas científicas tangenciais (distração do tema central), criação de institutos privados de pesquisa (verniz), campanhas publicitárias com crianças e médicos e muito mais
E olha o tamanho da sacanagem: os negacionistas usam a ciência pra refutar a ciência. Eles usam verdades irrelevantes, como dizer que “há muitas causas possíveis para o câncer” ou “a maioria dos fumantes morre por outras razões” pra rebater o fato de que cigarro pode matar
Em Mercadores da Dúvida, os autores demonstram como as mesmas táticas tem sido usadas (pelas mesmas pessoas e até pela mesma agência de marketing!) pra refutar um fato científico: as Alterações Climáticas Antropogênicas (resultado de ação humana)
Você leu corretamente: fato científico. Não existe debate sério no meio científico sobre o impacto humano no clima do planeta, no entanto, não é incomum ler reportagens onde cientistas que não estudam o clima são ouvidos como fontes sobre o assunto. E o que eles dizem?
Verdades irrelevantes: “o clima do planeta já mudou antes”, “o CO2 é um gás essencial à vida”, “as temperaturas tem caído nos últimos dois anos na região geográfica X”. Ok, verdades pontuais, mas elas em nada alteram a realidade da Crise Climática que nós estamos causando
Aqui, vc encontra as respostas científicas pra cada um destes (e também pra outros) argumentos negacionistas vazios: opr.ca.gov/facts/common-d…
Corta agora pra #COVID19 . Os negacionistas estão se organizando, no Brasil e fora. O lockdown ataca o cerne do capitalismo, que é dependente do crescimento econômico, que é dependente da produção industrial, que é dependente das pessoas produzindo e consumindo
É aqui, por sinal, que a Agnotologia encontra também a pós-verdade e o Capitalismo de Vigilância (a trinca de autores indispensáveis pra mim hoje em dia são: Naomi Oreskes, Bruno Latour e Shoshana Zuboff, mas falo disso em outro fio)
É claro que a recessão econômica inevitável é assunto urgente e que precisa ser abordado, mas não existe dicotomia real entre a necessidade de preservar vidas e a demanda por estratégia pra lidar com o impacto econômico da pandemia. Este é um uso político de uma questão sanitária
Embora o isolamento social radical não seja ainda um fato científico, é notória a tendência a um quase consenso entre os principais cientistas da área: infectologistas, virologistas, epidemiologistas
Quando especialistas das principais instituições científicas do mundo apontam um mesmo caminho, o melhor a fazer é seguir. A estratégia econômica precisa ser discutida a partir daí e o jornalismo precisa escolher se quer perpetuar a ignorância ou o conhecimento
