1/ Almocei num restaurante que passava nas telas o show Kaia na gandaia de Gilberto Gil. O show é uma homenagem ao reggae de Bob Marley. Gil canta e encanta, dança e ilumina. Uma delícia. Mas...
2/ Tinha gente com cara feia na mesa.
- Odeio o Gil.
Gil era então ministro aliado ao governo do PT, portanto tudo que fizesse devia ser execrado. Não interessa sua história como artista, seu valor como poeta, sua capacidade como músico e intérprete.
3/ Até quem não gosta dele reconhece sua importância na história da Musica Popular Brasileira.
Mas Gil estava contaminado. Por uma "ideologia". E uso a palavra "ideologia" entre aspas, pois não sei se o circo político brasileiro tem algo que se possa chamar de ideologia.
4/ Interessante essa dificuldade que a gente tem de separar a pessoa da obra da pessoa, não é? Basta que o poeta abra a boca para uma declaração política e pronto!
5/ Contamina-se.
Essa separação "ideológica" em grupos, tribos, castas, raças, pode ser um indicador da qualidade da inspiração, da obra, da arte das pessoas? Quando fala de saudades o comunista fala melhor que o capitalista?
6/ O amor do católico é melhor que o amor do muçulmano? A arquitetura de Oscar Niemayer é ruim por ele ser comunista? Um músico negro toca pior que um branco?
7/ Um verso como "Ai, como essa moça é distraída / Sabe lá se está vestida / Ou se dorme em transparente", de Chico Buarque, ficou ruim depois que ele disse que adora Cuba ou que votou em Lula? Para mim, não.
8/ Apesar de discordar do Chico político, continuo tiete do poeta, que é o que realmente me interessa.
Lembro-me da carreira de Wilson Simonal, destruída quando ele foi injustamente apontado como dedo duro pelas patrulhas que lutavam contra o governo militar.
9/ Repentinamente o carisma, o balanço e a simpatia do ídolo que arrastava multidões passou a não valer nada. Um rótulo ideológico destruiu o artista.
10/ Tempos atrás tomei minha decisão. Quando o assunto é arte, só tenho reservas quanto a uma "ideologia": o consumismo. Leia bem: con-su-mis-mo. Quando a arte é absorvida pelo comércio, deixa de ser arte. Morre.
A arte está acima da política, mas precisa da política.
11/ No entanto, não consegue contaminar a política. É a política que contamina a arte. E então as pessoas passam a odiar o artista, transformado em objeto político. O coração pede pra amar, mas a consciência manda odiar. Louco isso, não é?
12/ - Ah, mas artistas são personalidades públicas. Têm responsabilidades como formadores de opinião!
Também acho. Mas aí o papo é sobre política, não é mais sobre arte.
Arte é para ser apreciada com os olhos da alma.
13/ Poesia vem do coração, da alma, de lugares onde a política não se mete. E quando se mete, é para usar a arte, não raro, soando falsa. Populista. Você consegue reconhecer isso no riso amarelo do político com a criança miserável no colo, no horário eleitoral?
14/ A política, ao menos essa que está aí, reduz a complexidade de nossas vidas e o valor de nossos sentimentos a meros instrumentos de troca.
Mas eu me vacinei. Aprendi a apreciar o que quero e não o que alguém quer. Rótulos, quem dá sou eu. E na música, só ouço o que gosto.
15/ E o que gosto, para mim, é música boa, com eleição ou sem eleição, com partido ou sem partido, com ideologia ou sem ideologia.
Na hora de lidar com a arte, minha ideologia é meu coração.
16/ __________________________________________
Esse texto faz parte de meu livro Nóis...Qui Invertemo As Coisa, de 2009.
• • •
Missing some Tweet in this thread? You can try to
force a refresh
1/ Sou da geração de 1956, uma molecada que nasceu e cresceu meio que num hiato. Quando surgiu o amor livre eu era jovem demais. Quando fiquei maduro, apareceu a AIDS... Sou da geração que era jovem demais para curtir compreender Woodstock.
2/ E 1968, o ano das grandes mobilizações, eu tinha 12 anos de idade e morava numa cidade do interior. Quando vim para São Paulo, em 1975, uma parte importante dos acontecimentos que mobilizaram o país já havia sido deixada para trás.
3/ Mas começava uma nova fase de ebulição e acabei tomando parte em manifestações que provocaram mudanças no país.
Aos 20 anos de idade, recém chegado do interior, eu era como aquele sujeito descrito por Álvaro de Campos: eu era nada, nunca seria nada, não podia querer nada.
1/ Cafezinho 322 – O deleite
Fiz uma Live esta semana e algumas pessoas me disseram: “Luciano, dava pra perceber que você estava se divertindo!”
Você já vivenciou isso, hein? Lidou com alguém que parece estar se divertindo com o que faz?
2/ Até algum tempo atrás eu usava essa expressão “divertindo-se”, até que eu procurei num dicionário e vi que “diversão” quer dizer recreação, distração, entretenimento. O que não era bem a definição do que eu estava sentindo.
3/ Parti em busca da palavra perfeita e achei “deleite”, que quer dizer gozo íntimo e suave, prazer inteiro, pleno. Delicia.
Agora, sim!
1/ Na primeira semana de Julho de 2020, um grupo composto por dezenas de escritores, artistas, jornalistas e profissionais em diversas áreas publicou uma Carta aberta sobre justiça e debate nos Estados Unidos.
2/ Eles perceberam que o clima de confronto na sociedade está fazendo com que ideias não sejam mais discutidas, mas aniquiladas. Num trecho, eles escrevem assim:
“Os editores são demitidos por publicar peças controversas; livros são retirados por alegada falta de autenticidade;…
3/ …jornalistas são impedidos de escrever sobre certos tópicos; os professores são investigados por citar obras de literatura em sala de aula; um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico revisado por pares; e os chefes das organizações são demitidos pelo que às…
1/ O jornalista J.R.Guzzo escreveu que “Está crescendo rapidamente no Brasil um novo totalitarismo. Uma de suas taras é a seguinte: temos de salvar a democracia proibindo a manifestação das opiniões que achamos antidemocráticas.
2/ Resumo da ópera: ou você pensa o que a gente aprova ou então fica em casa e cala a boca.”
3/ Guilherme Fiúza escreveu que “Essa democracia que já sobreviveu a prepotentes e larápios tem agora uma novidade quente: personagens que sempre se disseram liberais aparecem dizendo que a manifestação A pode, mas a manifestação B não pode.
1/ Em 1990 os psicólogos Deborah Prentice e Dale Miller foram chamados para tentar resolver um problema na Universidade de Princeton. A garotada estava entrando de cabeça na bebida, o consumo de álcool estava atingindo proporções alarmantes com as consequências conhecidas.
2/ Após conversar com a garotada que enchia a cara, os psicólogos descobriram que, individualmente, os garotos e garotas concordavam que a bebida era um problema, que o consumo era excessivo e que deveria haver algum tipo de controle no campus.
3/ Mas esses garotos e garotas achavam que essa era a opinião deles, que a maioria achava que o consumo de álcool estava certo, portanto eles nada diziam ou faziam.