Rápidos comentários ao caso Mariana Ferrer ou lição prática sobre a cultura do estupro. (segue o fio).
Estupro é a prática de ato libidinoso (ato típico de satisfação sexual) por meio de violência ou grave ameaça, cf. o art. 213 do CP, e recebe pena de reclusão de 6 a 10 anos.
Variação mais grave é o estupro de alguém particularmente vulnerável, seja pela idade (menor de 14 anos), seja pela incapacidade, permanente ou momentânea, de consentir com o ato sexual (a exemplo daquele profundamente embriagado). Nesses casos, a violência é presumida.
Quem pode estuprar? Qualquer um. Mulher, homem, marido, ainda que incapaz de ter ereções, já que penetração não é a única modalidade de ato sexual criminalizado.
Quem pode ser estuprado? Qualquer um. Homem, mulher, esposa, virgens, profissionais do sexo, depravad@s, pudic@s etc.
Faz sentido, em audiência, perguntas que digam respeito à condução pública ou privada da sexualidade da vítima? Não, já que isso é irrelevante para a prática do delito. O CPP, aliás, dá poder a(o) juiz(a) de indeferir perguntas impertinentes (art. 410, p. 1o.)
É admissível que a vítima seja destratada em audiência? Jamais; nem a vítima, nem o réu. A reprovação pela conduta se dá na sentença; é um ato público, oficial, dirigido a toda a sociedade.
Tratar a todos em audiência com respeito, para além de ser óbvio, é um dever d@s magistrad@s (LOMAN, art. 35, IV); do MP (LC 75/93; art 235, VIII) e d@s advogad@s (Lei 8.906/94, art. 33, pu). Fala-se em urbanidade nos três artigos.
Uma sala de audiência com quatro homens atacando, de forma humilhante, ou permitindo que se ataque uma mulher, vítima de estupro, é dar continuidade à odiosa percepção difusa de que, no fundo, ela mereceu ter sido estuprada.
Mas Davi, às vezes vítimas mentem. Ok, pode mesmo acontecer. A solução é simples: na sentença - que será absolutória - consigna-se a mentira e o MP tem o poder de investigar/denunciar por denunciação caluniosa, por exemplo. Humilhação pública não é sanção jurídica válida.
E esse papo de estupro culposo? 1. Só existe estupro doloso. O motivo é simples: não há violência/grave ameaça culposa, por negligência. São atos que pressupõe clara intenção quanto a um resultado.
2. Pelo que li, foi 1 argumento retórico do MP p/ indicar q o réu não tinha como ter clareza q Mariana não estava mais a consentir com o ato sexual. Fosse esse o caso, estaríamos, tecnicamente, no campo do erro, o que poderia afastar o dolo. Mas isso não tornaria o crime culposo.
A sentença absolutória considerou não haver prova suficiente para condenar o réu por estupro. Não li a sentença, e não posso julgar a qualidade da fundamentação.
Julgar não é dizer sobre os atributos do réu ou da vítima. Julgar um caso criminal é aferir se a acusação conseguiu provar, com alto grau de probabilidade, que o fato aconteceu, que o réu é autor e decidir qual a norma que mais bem se enquadra ao fato.
Nem todo réu é culpado; nem toda vítima diz a verdade. O remédio é um só: devido processo legal. Absolvição do inocente; responsabilização da denunciação caluniosa. Dentro dos autos, dentro da lei. A partir de fatos, de provas, não de juízos moralistas sobre a vida alheia.
Provada a condição de vítima de Mariana, ela terá sido estuprada duas vezes. Uma na ocasião do crime, outra, simbolicamente, na audiência. Sob o manto do Estado-julgador foi vilipendiada, humilhada. Subproduto da cultura do estupro.
Quando em 1976 Evandro Lins e Silva atemorizava os jurados de Búzios descrevendo a lasciva pantera Ângela Diniz, que teria se suicidado pelas mãos de Doca Street, errava marcado por seu tempo. Esse julgamento, aliás, destampou parte da opressão feminina; "quem ama não mata".
Passados 44 anos, o manejo da pantera lasciva em sala de audiência gera repulsa. E acontece muito. Todos os dias. Recomendo o podcast Praia dos Ossos, da @radionovelo para quem quiser conhecer mais do triste assassinato de Ângela Diniz. Para que não se repita.
Eis o fio, @AngeloRobertod7
Atualização: embora eu não afirmado que o estupro culposo (sic) tenha sido usado pelo MP ou pelo juiz, por clareza e boa-fé, essa expressão foi empregada pelo Intercept. Não muda nada minha análise acima.

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