Thread by @leoffmiranda

Hoje é a 1º vez que técnicos portugueses se enfrentam no Brasileirão.

Para muitos é uma prova de como os brasileiros estão defasados...

Não é isso. Ninguém tá olhando para o que importa: educação. Nacionalidade não torna ninguém melhor. Ter lugar pra estudar sim. Fio👇

Você já parou pra entender como um país tão pequeno que é possível percorrê-lo de costa a costa em 4 horas e com pouco mais de R$ 10 milhões de habitantes (menor que São Paulo e Rio de Janeiro) exporta técnicos tão bons ao mundo?

Bom, tudo começa numa viagem em 1935.

Cândido Oliveira, membro da comissão técnica da Seleção na época, queria melhorar o time para classificar os portugueses para a Copa de 1938.

Ele viajou para Londres para um estágio no Arsenal, onde não chegou a trabalhar com Herbert Chapman, mas viu todo seu legado.

O contato com as ideias e métodos de treinamento até então novos na época fez Cândido escrever um livro, o primeiro em português sobre tática: "Football, Técnica e Tática".

Foi um sucesso. Apaixonado pela escrita, Cândido fundou o jornal "A Bola" em 1945.

O livro de Cândido criou um clima de união entre treinadores e jornalistas para falarem sobre o jogo e ver o resultado como consequência e não como produto final no futebol.

Portugal começou a atrair bons treinadores. Béla Guttmann e o brasileiro Otto Gloria fizeram sucesso lá.

O sucesso estimulou portugueses a buscarem cada vez mais conhecimento.

Um deles em especial: Manuel Sérgio. Ele era um professor de filosofia apaixonado por futebol quando percebeu que várias teorias que ensinava em sala poderiam servir para o jogo. Então ele comprou uma briga.

Manuel tinha ideias tão novas para a época que ganharam até nome: "Motricidade Humana".

De forma simples, Manuel queria entender o ser humano por completo, incluindo aspectos sociais e filosóficos, para depois entender como ele poderia jogar melhor o esporte.

As referências eram váriadas: Teilhard de Chardin, Emmanuel Mounier, Husserl....Manuel queria acabar com a visão cartesiana da formação e ver o mundo não mais em preto e branco, mas com diversas nuances.

Escrevi sobre isso aqui 👇

https://twitter.com/leoffmiranda/status/1297543029033701379

Manuel enfrentou MUITA resistência. Antigos treinadores não viam utilidade naquilo. Alguns chamavam ele de louco. Mas em 1975 ele conseguiu, enfim, criar a primeira especialização em futebol, mesmo que dentro da graduação de Educação Física.

O interesse foi imediato.

José Maria Pedroto, técnico do Porto, bancou os conceitos de Manuel no time, que melhorou consideravelmente.

Era o que Manuel precisava para, enfim, separar Educação Física do futebol e criar o primeiro curso de treinadores da Faculdade de Motricidade Humana na UTL.

Um dos maiores discípulos de Manoel foi Jesualdo Ferreira, que foi aluno de motricidade humana após se aposentar com apenas 20 anos. Dentre todas as matérias, ele se interessava muito por comunicação e como o treinador poderia ser um facilitador da aprendizagem.

Jesualdo também era metódico e acreditava que Portugal precisava melhorar a formação de seus jogadores. Ele trabalhou em todos os escalões de formação e contribuiu para estruturar a base, colocar processos de observação e melhoria de jogadores.

Isso ANTES de ser treinador.

Jesualdo mostrava essa visão global do processo de formação nos cursos de treinador no início da década de 1980.

Ele teve dois alunos brilhantes, que considerada serem os melhores que teve.

O primeiro era um tal de José Mourinho, que impressionou pelo trabalho de conclusão de curso, quando analisou o papel da marcação alta na Copa de 1982 e como o futebol caminhava para ter menos espaço e mais intensidade.

Mourinho trabalhou na base por anos, e o conhecimento das ideias de Jesualdo e Manuel, além do inglês fluente, o fizeram ser chamado por Bobby Robson no Barcelona.

Um ano depois, ele ajudou Van Gaal a formar as bases do Jogo de Posição, como conto aqui 👇
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O outro aluno era Carlos Queiróz, tido como um discípulo tão fiel que logo virou treinador de base, e aplicando a mesma formação humana, ajudou a revelar talentos como Luís Figo, Rui Costa e Vítor Baía.

Um formador nato que Alex Ferguson chamou para ser auxiliar em 2004.

Mourinho e Queiróz deram visibilidade mundial para o que acontecia desde 1975: um ambiente de FORMAÇÃO, onde pessoas sentam numa sala de aula, aprendem, discutem e produzem CONHECIMENTO sobre o futebol.

E não é porque querem. É porque são OBRIGADAS, por lei, a fazerem isso.

Outros países começaram a ver o que Portugal estava fazendo. Na Itália, a escola de Coverciano se tornou referência.

Em 1984, um ex-jogador publicou uma tese defendendo o fim da marcação individual e a referência zonal e o pressing como melhores organizações do espaço de jogo.

Era Fabio Capello, que foi treinador da base e auxiliar de Arrigo Sacchi e ajudou a implementar uma das maiores revoluções táticas do futebol: o Milan de 1989/90, com sua linha alta e o pressing que ninguém conseguiu imitar.
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Portugal viu que tudo começava na formação e aprimorou os cursos de treinadores, que são divididos em quatro escalas: C, B, A e Pro.

A Licença C tem como prioridade formar o aspecto humano e de formação do treinador. Seis meses de aulas teóricas, diárias e com vários trabalhos.

As matérias são das mais variadas possíveis: metodologia, psicologia, capacidade motora, comunicação...

Essa aqui é a grade do curso Uefa C que vou fazer ano que vem, em Portugal. Parece faculdade porque a intenção é isso mesmo: ser faculdade.

Uma vez finalizada a formação, quem quer ser treinador precisa passar por um estágio.

Como assim? Então quem jogou precisa "ser estagiário"?

Isso mesmo: formação teórica e prática formando a práxis do treinador.

Uma vez feita a Licença C, a pessoa está apta a treinar clubes de base e só pode entrar na outra Licença com uma experiência de algumas "épocas". E assim vai até chegar na Licença Pro.

É tão bem estruturado que a UEFA implementou esse sistema em toda a Europa.

Todos os técnicos portugueses que você vê aqui no Brasil, como Abel, Sá Pinto ou outros como Carlos Carvalhal, Leonardo Jardim, Nuno Espírito Santos e Jorge Jesus passaram por esse PROCESSO e ESTUDARAM antes de serem técnicos.

Olha aí o trabalho de formação do técnico do Braga.

Diante de tudo isso, se questione: os treinadores portugueses são melhores porque simplesmente nasceram lá?

Não. É porque eles têm uma ESCOLA de formação. É porque eles estudam antes de ir ao campo. É porque eles RESPEITAM O PROCESSO e confiam na ciência. Não tentam negá-la.

Eles fazem isso DESDE 1975. Se você pensar que não faz 10 anos que o Brasil tem um curso de treinador, são, pelo menos, TRINTA ANOS a mais de experiência deles em relação ao Brasil.

Conseguiu entender que não é o treinador que tá atrasado?
Que é nossa formação que tá defasada?

A CBF Academy é muito bem intencionada. Só que ela corre contra trinta anos de defasagem.

Hoje os cursos têm duas semanas e as matérias são passadas rapidamente. Não há uma linha condutora de fato. É uma boa reunião de excelentes palestras que podem despertar sua mente.

Faço aqui o papel de cobrar.

Boa formação tem que ter início, meio e fim. Tem que ter teoria e prática bem definidas. Tem que ter matérias muito mais amplas, incluindo psicologia e até sociologia. Afinal, o esporte é uma atividade humana. Precisamos entender o ser humano.

É preciso ter muito cuidado quando te vendem a ideia que "os treinadores brasileiros estão ultrapassados".

Essa frase leva a conclusão terríveis.

Te faz nutrir raiva, te vende à falsa solução de que basta pegar o estrangeiro e pior: te faz desvalorizar nossos treinadores.

É essa frase que faz o Brasil não valorizar sua cultura ou tentar colocar ela numa escola como Cândido Oliveira fez lá na década de 1930. O resultado são mentes brilhantes que são esquecidas ou entram na história cheias de preconceito como Filpo Nuñez.
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Essa frase te faz esquecer que há treinadores brasileiros geniais que merecem nosso eterno respeito, mas diminuem o interesse pelo que eles têm a falar ou ensinar. Faz o Brasil tratar mal um gênio como Rubens Minelli, um dos maiores treinadores da história
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É essa frase que ajuda a nutrir a impaciência com treinadores e que forma uma cultura onde o técnico é tido como um salvador da pátria e precisa resolver problemas que não são e não devem ser dele ao invés de cuidar do desenvolvimento do time.
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Não acredite nessa frase. Ela é danosa e faz mal ao nosso futebol.

A única forma de mudar a vida das pessoas é pelo conhecimento. Estamos falando de escola, formação e principalmente: instituições e oportunidade.

No Brasil não tem nem um, nem outro.

Como você tira o cara da favela da pobreza? Com estudo. Como você faz gente do interior estudar? Com oportunidade.

Você confiaria num médico que foi na praia ao invés de ir na escola pra te operar? Contrataria um advogado que não fez a OAB pra te defender?

O Brasil é o único lugar que tira sarro de quem busca conhecimento, de quem estuda e quer aprender.

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Precisamos valorizar nossos treinadores. Eles lidam com problemas muito maiores do que os que você pensa.

Passou da hora de falar mais de escola e cobrar melhorias e bater menos naquele técnico brasileiro...isso é tática pra desviar teu olhar do que importa.

Ah, e sabe o Cândido Oliveira, o pai da escola portuguesa? Ele foi treinador do Flamengo em 1950 e veio para implementar uma escola de treinadores no Brasil. Foi demitido após seis jogos.

Precisamos mudar.

É hora de cobrar: como está a formação de treinadores no Brasil?