A história da indústria automobilística chinesa é uma ótima aula sobre as razões que fazem ser tão difícil para um país pobre atingir alto nível de desenvolvimento, mas também sobre as oportunidades que surgem quando se tem ambição e visão.
Primeiramente, não é à toa que a indústria automobilística é considerada estratégica em tantos países. A cadeia de fornecimento é longa (elevado número de partes e peças e de serviços terceirizados), cria muitos empregos com bons salários e incorpora e gera inovação e tecnologia
A primeira vez que foi elaborada uma estratégia para o desenvolvimento da indústria automobilística na China foi em 1994.
A meta era criar de três a quatro conglomerados automotivos com "competitividade internacional" até 2010, com marcas e tecnologia nacionais.
Em 2009, a China havia se tornado a maior produtora e vendedora mundial de automóveis. Porém, as marcas nacionais, objetivo maior da estratégia, não decolaram
Em 2010, elas atingiram o auge da participação no mercado interno (46%), decaindo depois, e com exportações irrelevantes
O desafio não era trivial. O objetivo era alcançar as empresas tradicionais dos EUA e da Europa e as ascendentes da Ásia, desenvolvidas com muito apoio estatal.
As barreiras à entrada eram imensas. As pioneiras tinham escala, experiência, tecnologia e marcas reconhecidas.
Ademais, a preferência pelo importado é esperada em países pobres
“Montadoras chinesas devem encarar o fato de que os consumidores têm impressões negativas em relação às marcas chinesas"
“...ainda muita gente não entende, não aprova e não gosta de marcas automotivas chinesas”
A China fez uso da sua melhor cartada: o mercado interno.
Multinacionais estrangeiras que quisessem se aproveitar do seu mercado deveriam formar joint-ventures (JVs) com empresas nacionais, em geral estatais, possuindo no máximo 50% das JVs, e transferir tecnologia e know-how
Por um lado, essas JVs facilitaram o acesso das empresas nacionais a tecnologias estrangeiras, preservando o capital nacional
Estratégia que foi mais bem-sucedida do que as adotadas pelo Brasil (montadoras 100% estrangeiras) e pelo México (maquiladoras)
Porém, a participação mínima de 50% nas JVs parece ter sido insuficiente para incentivar a busca por autonomia tecnológica.
“Elas (empresas nacionais) podem ter se tornado complacentes”, já que estão “obtendo todo o lucro das JVs”. "Por que investir tanto em marcas próprias?"
Studwell, por exemplo, em seu excelente livro sobre a ascensão asiática, traz inúmeros relatos de como JVs automobilísticas dificultaram a criação de marcas e tecnologias nativas na região, como no caso da JV entre a japonesa Mitsubishi e a ascendente malaia Proton
“A Mitsubishi vendia equipamentos obsoletos à JV, reduzia o ritmo do aumento de conteúdo local acordado, vendia partes e peças superafaturadas e construía carros que sabidamente não atingiriam padrões de qualidade exigidos para exportação”
Por outro lado, a coreana Hyundai abandonou uma JV com a Ford, recusou um motor obsoleto lincenciado pela Mitsubishi, resistiu a pressões para se fundir com multinacionais estrangeiras durante as crises (como a GM em 1980) e diversificou as fontes das tecnologias mais cruciais.
Tudo apoiado pelo Estado. O Plano de Longo Prazo para o setor, de 1973, foi elaborado pela burocracia coreana em contato próximo com a Hyundai. Subsídios dependiam de alto conteúdo local, de metas de exportação e da fabricação de modelos originais coreanos
Nada disso interessava às multinacionais. Por fim, o Estado ainda restringiu o número de modelos que poderiam ser produzidos e aumentou o tempo mínimo de vida de cada modelo antes da nova versão, eliminando a vantagem de escala e de escopo das multinacionais.
Assim, o modelo chinês parece sofrer do mesmo problema do modelo malaio: lucro relativamente fácil e baixos incentivos ou maiores entraves para o desenvolvimento de tecnologia nativa por parte das empresas nacionais
A SAIC, maior produtora chinesa, obtém 90% do seu lucro de JVs
Então a política não entregou tudo o que prometia
Fim da história? Não pra quem tem ambição e visão
Se a competição com as multinacionais é dura na indústria automobilística tradicional, o Estado chinês passou a apostar em uma mudança de paradigma antes que virasse tendência
No mesmo ano em que se tornou a maior produtora mundial de automóveis tradicionais (2009), a China adotou um ambicioso plano de desenvolvimento de veículos elétricos
A China tem a mais avançada cadeia de suprimento para veículos elétricos, que exigem tecnologia e know-how muito distintos.
O que eram barreiras à entrada que garantiam a liderança dos países tradicionais, agora se tornaram um passivo difícil de superar bloomberg.com/features/2019-…
Não à toa, políticas industriais “verdes” que buscam estimular a transição para veículos elétricos se tornaram comuns nos produtores tradicionais
Resta saber se não é tarde demais. A China saiu na frente e, tal qual as pioneiras do passado, não pretende ceder a liderança
FIM
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East Indies, ou British East Indies, outra grande exportadora de algodão da época, provavelmente é a Índia atual, que ficou muito para trás no desenvolvimento econômico até recentemente. O mesmo aconteceu com o Egito.
A notícia de que a China pretende importar soja da Tanzânia, um país que não é tradicional exportador, para reduzir suas compras dos EUA e do Brasil, é só mais uma a deixar clara a vulnerabilidade dos produtores especializados em bens simples
Ora, porque produzir bens simples como a soja não é... difícil
Hoje em dia, com os avanços em áreas como a biotecnologia, nem mesmo o clima é capaz de impedir o cultivo desses produtos por países não tradicionais scmp.com/news/china/dip…
1) Governo atrai multinacional estrangeira com subsídios bilionários (mais de R$ 22 bi), anunciando a prometida fábrica como a oitava maravilha do mundo
2) Multinacional acaba investindo apenas 2,8% do que foi acordado.
A fábrica, que deveria ter 1,9 milhões de m², acaba tendo apenas 2% da área construída
Isso depois de o Estado realocar forçosamente os moradores da região
3) Multinacional acaba gerando só 13% dos empregos prometidos, e ainda assim porque criou funções desnecessárias para atingir a meta anual acordada, a qual lhe daria acesso a mais subsídios
Empresa contrata no final do ano, quando é feita a contagem, e demite logo depois
Um dos países que mais se desindustrializou nas últimas décadas, Reino Unido enfrenta dificuldades para resistir ao avanço chinês sobre suas joias remanescentes (1/10) asia.nikkei.com/Business/China…
A ARM Holdings se especializou no design de semicondutores
Empresa possui 90% da propriedade intelectual essencial aos chips utilizados por empresas como Apple, Qualcomm, Samsung, Huawei e TSMC, particularmente para uso em smartphones, tablets e smart TVs
Em 2016, a empresa foi desnacionalizada, sendo vendida para a megainvestidora japonesa Softbank
Em 2018, de olho no mercado chinês, cedeu controle das suas operações na China para uma joint-venture com investidores locais, incluindo entidades estatais asia.nikkei.com/Business/Compa…
Artigo importante para o debate sobre estratégias de desenvolvimento
Autores afirmam que Chile e Malásia estariam se aproximando da renda alta, juntando-se aos poucos países que chegaram lá nas últimas décadas, com um modelo distinto dos demais (1/17) link.springer.com/article/10.100…
Recorda-se que atingir a alta renda tem sido difícil. Um dos parâmetros mais utilizados é um percentual sobre a renda per capita americana
Os autores utilizam 40%, mesmo critério de um estudo do Banco Mundial que mostrou que apenas 13 países atingiram alta renda desde 1960
Basicamente, são países que podem ser enquadrados em três grupos: (i) países ricos em recursos minerais; (ii) países que se beneficiaram com a integração à União Europeia; e (iii) os tigres asiáticos
Outros estudos mais recentes, como o do FMI (2019), vão no mesmo sentido