Revisão sistemática e meta-análise: O que vários estudos têm a nos dizer sobre a carga viral e tempo de transmissão da doença? - 🧶

Autores: Fernando Kokubun (@FernandoKokubun), Larissa Brussa Reis (@laribrussa) Image
Revisores: Marcelo A. S. Bragatte (@MarceloBragatte), Mellanie F. Dutra (@mellziland)

Link do texto na íntegra: redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/12/01/rev…
Estamos em novembro de 2020, convivendo há cerca de 8 meses com a pandemia da COVID-19, decretada em março de 2020 pela OMS, com seu epicentro (local de início da transmissão da doença) em Wuhan, na China, no ano de 2019.

who.int/director-gener…
Desde então, diversas evidências científicas são publicadas diariamente. Este grande quantidade de artigos e pre-prints contém muitas informações que são interessantes de serem analisadas em conjunto,
seja na forma de artigos de revisão bibliográfica ou em artigos de revisão sistemática, que realizam meta-análises destas produções.
Em linhas gerais, um artigo de revisão sistemática com meta-análise reúne informações de estudos publicados sobre algum assunto em um determinado período, onde todas as análises estatísticas desses estudos são levadas em consideração.
O resultado é uma análise robusta que consegue reunir e avaliar diferentes parâmetros, apresentando uma compilação dos estudos em um único resultado, trazendo uma compreensão mais ampla do objeto de análise.
Esse tipo de estudo é considerado o mais alto poder de evidência, como podemos entender melhor nesse texto da Rede Análise COVID-19.
redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/08/08/a-h…
Ao contrário de uma revisão bibliográfica, onde o autor compila informações sobre determinado assunto, baseado muitas vezes em uma opinião pessoal, é importante ressaltar que na metodologia de uma revisão sistemática os artigos que a compõem são escolhidos através de
filtros de inclusão e exclusão determinados antes da busca, e que todos os artigos são analisados de maneira independente por pesquisadores aos pares, com o objetivo de evitar qualquer viés na escolha dos artigos.
Um artigo recente de revisão sistemática com meta-análise, intitulado “SARS-CoV-2, SARS-CoV, and MERS-CoV viral load dynamics, duration of viral shedding, and infectiousness: a systematic review and meta-analysis” publicado na revista The Lancet em 19 de novembro de 2020
nos brindou com esta proposta de revisar e integrar os achados referentes à dinâmica de carga viral e tempo de duração da infecção pelo novo coronavírus.
Como o título deixa claro, o objetivo foi analisar os artigos que tratam de três dos coronavírus que causam algum tipo de síndrome respiratória grave.
thelancet.com/journals/lanmi…
Os artigos analisados foram publicados no período de 1 de janeiro de 2003 até 6 de junho de 2020. De acordo com os critérios estabelecidos pelos autores, inicialmente foram identificados 1486 artigos.
Destes artigos, após uma análise cuidadosa (excluindo, por exemplo, artigos de revisão, artigos de estudos em modelo animal, duplicidade, artigos que não apresentavam relevância para o tema da revisão sistemática - carga viral, descarga viral, infecciosidade),
foram escolhidos 79 artigos que trataram do SARS-CoV-2, 8 artigos que trataram de SARS-CoV e 11 que trataram de MERS-CoV.

Resumindo as características dos 79 estudos referentes ao novo coronavírus que foram incluídos nesta revisão sistemática,
é importante ressaltar que 58 deles foram feitos na China, mostrando que a maior parte da literatura sobre esses assuntos provém de lá. 73 estudos incluíram apenas pacientes em estado grave, que necessitaram de internação hospitalar.
61 estudos relataram liberação de RNA viral média ou máxima em pelo menos um fluido corporal e foram elegíveis para análise quantitativa a fim de avaliar as quantidades dessa carga viral
e seis estudos forneceram a duração da eliminação da carga viral estratificada pela gravidade da doença.

Detalhando um pouco melhor os principais achados da revisão sistemática, vamos começar pela análise da carga viral.
Estudos relatando a duração da disseminação viral na parte superior do trato respiratório e nas amostras de fezes foram elegíveis para as análises. A duração média da eliminação viral foi positivamente associada com a idade (0,304), mas não com o sexo.
Uma correlação positiva indica que as duas variáveis movem juntas, e a relação é forte quanto mais a correlação se aproxima de um.

Tratando-se dos 13 estudos que avaliaram a carga viral no trato respiratório superior, oito estudos mostraram que o pico da carga viral ocorreu
dentro da primeira semana, logo após ou no momento do início dos sintomas, ou no dia 3-5 da doença, seguidas por um declínio consistente. Cinco estudos avaliaram a dinâmica da carga viral em amostras do trato respiratório inferior, e relataram o pico de carga viral ocorreu na
segunda semana da doença, enquanto no caso das fezes, não foi encontrado nenhum padrão, variando de menos de uma semana até 6 semanas após o início dos sintomas, com as cargas virais mais altas relatadas no dia 2.
E como esta liberação da carga viral poderia afetar a gravidade da doença? A primeira questão a ser analisada seria quanto tempo dura a descarga viral, se esta descarga viral pode causar novas infecções. Em 13 dos 20 artigos que avaliaram duração da liberação da carga viral no
trato respiratório inferior, com base na gravidade da doença, foi relatado que pacientes em situações mais graves tiveram um período mais longo de liberação viral do que os pacientes com a doença menos severa. Cinco estudos em amostras do trato respiratório superior e um estudo
em amostras de fezes demonstraram eliminação semelhante.

Um dado que nos chamou bastante atenção, foi que todos os estudos que examinaram o efeito da idade na eliminação de SARS-CoV-2, exceto um, identificaram uma associação entre a idade avançada (acima de 60 anos)
e a eliminação prolongada de RNA viral e três desses estudos identificaram a idade como um fator de risco independente para a eliminação viral prolongada. O sexo masculino também foi associado à eliminação prolongada do vírus, e a associação permaneceu significativa mesmo quando
os pacientes foram estratificados com base na gravidade da doença.

Em relação aos assintomáticos, foram considerados 12 estudos, que relataram a dinâmica da carga viral ou a duração da eliminação viral entre indivíduos com infecção assintomática.
Dentre eles, apenas dois indicaram que a carga viral entre os assintomáticos era menor do que os indivíduos sintomáticos, e quatro indicaram carga viral semelhantes. No quesito descarga viral, 5 entre 6 artigos indicaram uma redução da carga viral mais rápida
em indivíduos assintomáticos do que os sintomáticos (um artigo indicou o contrário, mas com uma diferença não significativa).

Para a análise da infecciosidade, foram considerados 11 estudos que tentaram isolar o vírus vivo de amostras respiratórias.
Oito desses estudos cultivaram com sucesso vírus viáveis ​​na primeira semana da doença. Em três estudos. nenhum vírus vivo foi isolado de qualquer amostra respiratória colhida após o oitavo dia de sintomas, e em dois estudos, após o nono dia, apesar das cargas de RNA viral
persistentemente altas. Um estudo demonstrou a maior probabilidade de cultura positiva no terceiro dia dos sintomas. O sucesso do isolamento viral correlacionou-se com a carga viral quantificada por RT-qPCR.
Um dos artigos indicou que foi possível desenvolver uma cultura viral de uma amostra retirada do trato respiratório em um caso de indivíduo assintomático, levantando a questão da transmissibilidade nos indivíduos assintomáticos para a COVID-19. Outro estudo que vai de encontro
a essa questão foi publicado na Nature e demonstra que as evidências sugerem que cerca de uma em cada cinco pessoas infectadas não sentirá sintomas e mesmo assim transmitirá o vírus, mas indicam que a essa transmissão dos assintomáticos será significativamente menor do que
alguém com sintomas. A análise definiu pessoas assintomáticas como aquelas que não apresentaram nenhum dos principais sintomas do COVID-19 durante todo o período de acompanhamento, e os autores incluíram apenas estudos que acompanharam os participantes por pelo menos sete dias.
Em relação a comparação entre os 3 tipos de vírus analisados nesta revisão sistemática, a carga viral SARS-CoV-2 pareceu atingir o pico na parte superior trato respiratório na primeira semana após o início dos sintomas e, posteriormente, no trato respiratório inferior.
Em contraste, a carga viral de SARS-CoV atingiu o pico nos dias 10-14 da doença e o de MERS-CoV atingiu o pico em 7 a 10 dias de doença. Combinado com o isolamento de vírus viáveis ​​nas amostras de vias respiratórias, principalmente na primeira semana de doença, pacientes com
infecção por SARS-CoV-2 são provavelmente mais infecciosos na primeira semana de adoecimento, enfatizando a importância de isolamento imediato com início dos sintomas no início do curso da doença.
Os autores relatam algumas possíveis limitações desta revisão sistemática “.. praticamente todos os indivíduos incluídos nos estudos, receberam algum tipo de tratamento, que pode ter influenciado a dinâmica da diminuição viral” além de uma heterogeneidade nos estudos analisados.
Outro fator importante que podemos destacar é que a maioria dos estudos são da população chinesa (73,41% - 58 em 79 estudos), sendo mais uma limitação extrapolar os dados para outras populações mais heterogêneas, como as populações da América do Sul, por exemplo.
Para concluir, apesar da certa heterogeneidade dos estudos incluídos na revisão sistemática, podemos destacar os principais achados deste trabalho: maior carga viral encontrada nos pacientes na primeira semana da doença, incluindo sintomas leves que geralmente aparecem antes
dos sinais mais característicos de COVID-19; a duração média da eliminação viral foi positivamente associada com a idade, ou seja, quanto maior a idade maior o período para a eliminação completa do novo coronavírus no organismo; pacientes em situações mais graves
tiveram um período mais longo de liberação viral do que os pacientes com a doença menos severa; e alguns estudos corroborando com quantidades similares de carga viral entre sintomáticos e assintomáticos para a doença.
Essas evidências reforçam toda a necessidade de um melhor gerenciamento e estratégias de comunicação entre todos nós que somos parte integrante desta sociedade, se quisermos conter de forma efetiva a atual pandemia.
Portanto, enquanto não tivermos um tratamento precoce eficiente e/ou a vacina, precisamos manter os hábitos de utilizar máscaras, distanciamento social, evitar aglomerações, higienização constante e sobretudo, um maior respeito pela nossa vida e pela vida de nossos semelhantes.

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