Ainda sobre o "Marx no Fliperama", gostei muito das páginas que ele fala do jogo "Civilization" - o qual sempre fui fã.
Mas acho que tem uma leitura mais sofisticada a ser feita. Sabem por quê jogos eletrônicos que simulam a história não simulam a origem do capitalismo?
Tenho duas hipóteses: a primeira é a que uma mercadoria capitalista não vai ser capaz de contar sua própria origem. Há uma mistificação na qual o jogo precisa encobrir a acumulação primitiva de capital.
Aquela história de sangue e sujeira, na origem do capitalismo? Se o foco for esse, como explicar os horrores que nos levaram até aqui? É como se uma bandeja de carne no supermercado tivesse imagens gráficas de frigoríficos e abates.
Fetichismo da mercadoria, numa linha marxiana. Mas como funciona nos games é curioso: Jamie Woodcock cita uma entrevista de Sid Meier, criador da série Civilization, explicando porque os jogos não tem representação da escravidão.
Meier queria evitar que os jogadores tivessem que fazer escolhas amorais para vencer (por exemplo, escravizar um povo para obter mais pontos de desenvolvimento). Disso, o jogo retira uma parte significativa da violência histórica e da transição capitalista: a escravidão.
Eu entendo essa lógica. Transformar a dor e o trauma de milhões de pessoas em entretenimento é terrível mesmo. Da mesma forma, ninguém faria um jogo em que você deveria gerenciar um campo de concentração (embora tenha jogos que simulam a construção e gerenciamento de prisões).
Mas no Civilization, a história de desapropriação de terra e espoliação do trabalho (e dos corpos!) de milhões de pessoas não é representada historicamente. O capitalismo é asséptico e, portanto, a própria mercadoria (o jogo) pode criar uma versão de si igualmente asséptica.
Todos os atos de desapropriação e espoliação que levam a criação do jogo estão, como um passe de mágica, escondidos do público. E como a acumulação primitiva nunca terminou, o processo se repete ainda hoje.
Mas se tudo fosse aparência, não tinha ciência, né?
Mesmo jogos de simulação histórica mais complexos como Europa Universalis e Victoria, da Paradox, caem em repertório semelhante. O processo coletivo e traumático é mero clicar de botão. Você coloniza uma região e pronto, sua nação fica mais rica.
Isso pode gerar revoltas, o que tem custo para o jogador, que precisa investir sua "riqueza" em repressão. Mas no geral, a conquista colonial é um processo sem sujeitos.
A escravidão, por exemplo, é mercadoria em EU IV. Como, por exemplo, sal ou lã.
Ao abolir a escravidão (só depois do Iluminismo!), as províncias que """produzem""" escravos mudam sua mercadoria. Simples assim.
Eu detalhei mais esse argumento num artigo que escrevi um tempo atrás, sobre como os jogos eletrônicos que simulam a história não fazem boa história pública (a medida que encobrem às origens do capitalismo):
A outra hipótese, que nunca sistematizei, é de que talvez seja impossível um jogo educativo e crítico sobre história, nos moldes das simulações, que envolva "ganhar" o jogo.
Talvez os simuladores históricos tivessem que abandonar de vez o realismo (não é como se estivessem indo bem nessa área) e se preocupar com uma lógica diferente, amparada na ucronia, no "e se"? Exercícios de imaginação que podem abrir espaço para críticas...
Jogos que possibilitem que a resistência ao "moinho satânico" seja o mote narrativo podem ser muito mais educativos que uma mecânica teleológica de progresso. Resistir ao colonialismo, à escravidão, ao patriarcalismo e ao capitalismo é muito mais educativo...
(ao menos dentro de uma educação crítica, é claro...fora disso, é só apologia).
Podem dizer que os games não deveriam ser politizados, mas, né...esse trem já zarpou desde "Pong". E depois do livro de Woodcock, creio que não tem mais espaço pra esse argumento.
Aliás, ótimo texto sobre o tema - e indicando jogos brasileiros!
Entendo todas as ponderações sobre a história do leite condensado do pessoal que falou que isso tava dentro do orçamento do Executivo e tal...
Mas rapidinho a galera encontrou as falcatruas, né? Superfaturamento vai ser mato...
162 golpes uma caixinha de leite condensado???
Uma varredura nos fornecedores é de boa, viu?
Sei lá, a gente quando pede uma caneta que seja numa universidade, tem que mandar demonstrativo, fazer pregão, orçar pelo menos 3 fornecedores diferentes...
Tenho gostado do pouco que tenho lido sobre "White Entitlement" ("merecimento branco" numa tradução mais literal).
Me parece um conceito muito bom para entender vínculos entre racismo estrutural e extrema-direita. E para pensar no que aconteceu ontem...
Muitos desses movimentos jogam com a ideia não do "privilégio", mas sim do "direito negado". Direito esse que é concebido como natural, de nascença, "birth right". Nasceu americano, portanto, tem direito a buscar a felicidade.
Mas a coisa fica rocambolesca porque essa promessa de felicidade, nos marcos do Estado nacional, nunca foi para todo mundo. Os grupos oprimidos (raça, classe, gênero...) nunca se iludiram com isso. Pelo contrário, era combustível para as lutas ter esse direito à felicidade...
Isso é uma virada na história da extrema-direita (que me corrijam os pesquisadores sérios aí): não tem mais volta. O trumpismo persistirá sem Trump no poder.
Parece que sem algo da ordem do trauma coletivo, os sujeitos"trumpistas" não vão se afastar do "chefe".
No caso dos dois Bonapartes, o trauma foi a derrota militar, que precipitou a queda do regime.
Outros regimes bonapartistas pareceram de outra sorte de derrotas.
Mas até onde sei, nenhum foi derrotado nas urnas. Sem trauma, tapinha nas costas e até logo.
Assim, comentei ontem com o @coalacroata , mas quem sabe, sabe: após Ialta, rifaram os comunistas da França, da Itália e da Grécia (esse foi o caso mais escabroso).
Não sei se é o melhor exemplo de Frente Ampla, não.
Na Frente Ampla, todo mundo faz compromissos, né? Todo mundo tem que ceder, certo?
Bem, o problema é sempre negociar a luta dos outros... No final, 12 mil partisans foram mandados para campos de concentração ingleses no Oriente Médio.
É incrível a capacidade da Falha de tirar o corpo fora dessa "polarização".
Como o dever do historiador é lembrar o que os jornalões querem esquecer, segue uma compilação de evidências que mostram como a imprensa criou essa "polarização":