Tenho gostado do pouco que tenho lido sobre "White Entitlement" ("merecimento branco" numa tradução mais literal).
Me parece um conceito muito bom para entender vínculos entre racismo estrutural e extrema-direita. E para pensar no que aconteceu ontem...
Muitos desses movimentos jogam com a ideia não do "privilégio", mas sim do "direito negado". Direito esse que é concebido como natural, de nascença, "birth right". Nasceu americano, portanto, tem direito a buscar a felicidade.
Mas a coisa fica rocambolesca porque essa promessa de felicidade, nos marcos do Estado nacional, nunca foi para todo mundo. Os grupos oprimidos (raça, classe, gênero...) nunca se iludiram com isso. Pelo contrário, era combustível para as lutas ter esse direito à felicidade...
... reconhecido. Mas em última instância, na esteira de um Fanon, lutar pelo reconhecimento de sua humanidade significa uma constante sombra de dúvida sobre a humanidade (o tal "birth right") uma zona cinzenta na qual os brancos dificilmente vão entender.
O que eles sentem, contudo, é de outra ordem. O "birth right" existe, mas está sendo negligenciado - os salários deles caíram (tanto o real quanto o psicológico, pra puxar aqui DuBois).
Até o último refúgio do direito natural, a linguagem, está sendo atacada e eles não podem...
... sequer fazer valer a busca pela felicidade usando de suas próprias expressões (que coincidentemente são vocalizações de uma série de opressões).
Aí reside o sucesso do slogan trumpista: a volta ao passado onde o direito natural era inquestionável.
Em parte, creio que muito dessa discussão pareça americanizada demais pra gente. Mas tem meandros bem brasileiros para pensarmos.
A retomada recente do discurso sobre meritocracia, por exemplo, na esteira da luta contra as ações afirmativas é bastante emblemática.
Meritocracia nunca foi um termo muito usual entre a elite intelectual que interpretou o Brasil (por motivos óbvios), mas o termo ganhou força no dito pensamento liberal. "Merecer" a felicidade (o cargo, a vaga) é uma ideia que apaga a raça do contexto sócio-histórico -
na verdade, apaga qualquer opressão ou desigualdade de origem para avaliar o mérito somente pela "chegada" (que são os tradicionais símbolos de distinção da elite, que deixa de acessar ele sozinha).
O "merecimento branco", nesse caso, não é necessariamente algo natural (como é o entendimento americano da coisa), mas está ligado ao apagamento da raça que se sente "meritória".
Nesse ponto, o "merecimento" é um horizonte no qual a extrema-direita nada de braçada.
Ele joga com vários aspectos nos quais os brancos sentem que estão sendo injustiçados. Ou porque ganham pouco, ou porque seus vizinhos fazem barulho, ou porque moram num bairro com cheiro diferente, ou simplesmente porque não podem nem fazer uma piada...
Esse sentimento de injustiça, ahistórico como é, é devidamente trabalhado por partidos e movimentos de inclinação fascista (mas não só!). A causa da injustiça são os negros, os gays, os índios, as mulheres...
Nunca é o capitalismo. Nunca é a própria branquitude.
A força dessa ideia é que a responsabilidade não passa por si. Não é os privilégios que você sustenta e ostenta e nem tampouco a estrutura sócio-econômica que você defende (mesmo que seu único patrimônio seja um Palio 2007).
É na verdade, uma grande falta. Com os privilégios que você sustenta e com a defesa apaixonada que você faz do capitalismo, por que você não está então no andar de cima? Ou seja, você não recebeu o que merece!
Enfim, o fio tá longo e como eu disse, quero ler mais sobre o conceito (inclusive, se tiver leituras brasileiras sobre ele, me indiquem). Mas a impressão que tenho é que esse sentimento de "white entitlement" explica tanta coisa hoje...
PS: um bom texto de divulgação sobre o termo é esse daqui:
Isso é uma virada na história da extrema-direita (que me corrijam os pesquisadores sérios aí): não tem mais volta. O trumpismo persistirá sem Trump no poder.
Parece que sem algo da ordem do trauma coletivo, os sujeitos"trumpistas" não vão se afastar do "chefe".
No caso dos dois Bonapartes, o trauma foi a derrota militar, que precipitou a queda do regime.
Outros regimes bonapartistas pareceram de outra sorte de derrotas.
Mas até onde sei, nenhum foi derrotado nas urnas. Sem trauma, tapinha nas costas e até logo.
Assim, comentei ontem com o @coalacroata , mas quem sabe, sabe: após Ialta, rifaram os comunistas da França, da Itália e da Grécia (esse foi o caso mais escabroso).
Não sei se é o melhor exemplo de Frente Ampla, não.
Na Frente Ampla, todo mundo faz compromissos, né? Todo mundo tem que ceder, certo?
Bem, o problema é sempre negociar a luta dos outros... No final, 12 mil partisans foram mandados para campos de concentração ingleses no Oriente Médio.
É incrível a capacidade da Falha de tirar o corpo fora dessa "polarização".
Como o dever do historiador é lembrar o que os jornalões querem esquecer, segue uma compilação de evidências que mostram como a imprensa criou essa "polarização":