Desde que, pela primeira vez, ouvi o Tommy, imaginei que seria divertido entrar 2021 cantando 1921. Ainda sem um bom domínio do inglês, eu não percebia que a letra abordava justamente o trauma que deixaria cego, surdo e mudo o garoto do título.
Décadas se passaram, já consigo ler e ouvir em inglês com razoável tranquilidade, mas ironicamente me sinto preso a um país cada dia mais cego, surdo e mudo.
Eu não vejo o Brasil como um caso único. Um ótimo professor já me ensinou que a história é lógica, com cada grande acontecimento reagindo a acontecimentos anteriores, sendo raros os casos em que poucos indivíduos atuam como motores de tais mudanças.
E o fenômeno que recentemente nos trouxe de volta ao fundo no poço moral é internacional, aflige vários povos e reage mais a um contexto do que à vontade de um fulano ou um beltrano.
Mas nada disso deixa menos dolorosa a vergonha de, há alguns anos, ter escolhido um papel ativo no furacão que varreria para longe qualquer traço de decência.
Quando um primeiro amigo surgiu simpatizando com Bolsonaro, pensei que cabia a mim exercitar a tolerância a um brother que, por algum motivo que talvez nem me coubesse, adotara a intolerância como fio condutor.
Quando um outro surgiu flertando com ideais supremacistas, pensei que cabia aos demais amigos buscarmos formas de resgatá-lo do que, era óbvio, não o levaria a nada de bom — mas nada fizemos.
Nem quando a mesa de bar que eu frequentava foi convertida em um fórum de idolatração a um parlamentar que enaltecia os feitos de um torturador, admiti que a missão não mais era nos salvar, mas salvar o mundo da gente.
Para a minha máxima vergonha, só explicitei o incômodo quando o bonde já havia perdido os freios. O que, como é de se imaginar, era tarde. E mais nada havia que eu pudesse fazer.
Contudo, ainda vejo se repetir o erro de que o bolsonarismo seria um fenômeno monocausal, o que, a depender do analista, largaria a culpa exclusivamente no colo do PT, dos tucanos, de quem anulou o voto ou até mesmo da imprensa que sempre — sempre! — batia em Bolsonaro.
Porque fui testemunha de que a conversão daquela mesa de bar em um conselho neofascista se deu por duros golpes de desonestidade descarada de parte dos que não estavam na mesa.
Sempre que um programa de governo virtuoso escolhido na urna virava papel picado, Bolsonaro ganhava eleitores.
Sempre que um governista terceirizava a governadores a culpa por tanta morte morrida e matada, Bolsonaro ganhava mais eleitores.
Sempre que juízes das cortes superiores aproveitavam finais de semana e plantões de férias para a libertação de ricos empresários que mantinham relações espúrias com o poder, Bolsonaro ganhava mais eleitores.
Sempre que a esquerda esticava a corda apostando que o eleitor mais humilde, por tanto necessitar de uma pequena bolsa mensal, referendaria absurdos que pareciam insuperáveis, Bolsonaro ganhava mais eleitores.
Sempre que a imprensa se contentava em reverberar sem contestações releases do Ministério Público, ou mesmo vazamentos suspeitos da Polícia Federal, Bolsonaro ganhava mais eleitores.
E, claro, sempre que influenciadores como eu não mediam as consequências da indignação que não faziam questão de conter, Bolsonaro ganhava mais eleitores.
O Brasil é um desastre cozinhado a muitas mãos. A receita rendeu 57,8 milhões de verdadeiros chutes no balde. E, em 2020, os chutes no balde findaram em quase 200 mil mortes por covid-19.
Porque, claro, uma tragédia dessa magnitude demanda um esforço coletivo.
O Agro é tech, é pop e é tudo. Inclusive, fiador de um governo genocida que persegue minorias, destrói o meio ambiente e avança contra a democracia.
O mercado financeiro, que há dez anos se fingia de entusiasta do efeito benéfico dos programas sociais na economia, hoje se satisfaz com o Ibovespa em seis dígitos.
As Forças Armadas, que surfaram a onda de uma geração que já nasceu em uma democracia, confirmaram que aquelas lições de moral que davam no STF eram mesmo ameaças de um novo golpe militar.
As lideranças religiosas, quando não pecam por chamar de amor o que, está na cara, é puro ódio, pecam pela omissão.
A classe médica, que tinha tudo para sair da temporada como heroína, vem sendo ofuscada por uma considerável fatia negacionista do próprio time, e o silêncio conivente de entidades de classe comparsas do mandatário da vez.
Assim como não é possível fazer vista grossa a uma espécie de série B da imprensa, que corre aos pés do Governo Federal como pombos famintos que duelam por migalhas de pão numa praça imunda.
Mas tal esforço coletivo é, sem sombra de dúvidas, um dos raros casos em que a história possui motor, um motor tracionado pelas quatro patas de Jair "Corrupto do Ano" Bolsonaro.
O presidente brasileiro já garantiu vaga na latrina da história, assim como aqueles que ainda o apoiam, e os que se recusam a agir para interromper tamanho desastre.
Mesmo assim, é possível entrar 2021 com alguma esperança. Porque haverá vacinas, e porque não mais haverá Donald Trump, ambas notícias péssimas para o clã Bolsonaro.
Também haverá a outra ala da imprensa, aquela que vem reconhecendo erros e buscando se reinventar. E a outra ala dos médicos, aquela que arrisca a própria vida para salvar até quem não merece ser salvo.
E haverá nacos de ciência, de diálogo, de fraternidade e de liberdade, ou tudo aquilo que o bolsonarismo teme.
Por isso tenho a sensação de que 21 será um ano melhor, ainda que não seja bom. Especialmente se eu e você pudermos passar por ele juntos. Nem tenho motivos para ser otimista. But somehow, when you smile, I can brave bad weather.
Que tenhamos um ano novo próspero. O primeiro de muitos.
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Como todo mundo, tive um 2020 complicado, dificílimo. Mesmo assim, consegui dele colher bons frutos. Como está todo mundo carente de notícia boa, achei que valia rememorar alguns desses bons momentos com vocês.
Assim que o ano se iniciou, achei que cabia fazer uma nova aposta em projetos pessoais. E comuniquei a @o_antagonista que só continuaria com eles até o final de fevereiro. mais.oantagonista.com
Nos dez meses dessa segunda passagem por O Antagonista, assinei com @CedeSilva uma coluna diária na versão paga do site, roteirizei a retrospectiva de 2019 em vídeo, participei do renascimento do Resumão Antagonista, e do nascimento do Boletim A+.
Eu falo desde o primeiro mês de governo: Jair Bolsonaro não vai melhorar porque não quer melhorar. É um sociopata rindo de quem espera algo construtivo dele. É o maior erro que o eleitor brasileiro já cometeu. Precisa ser contido. Quanto mais demorarmos, mais estrago fará.
A cobrança não deve ser feita a ele, mas a quem ainda tem força para contê-lo. Falo do Congresso Nacional, do STF, da imprensa, e da oposição.
Já perdemos a PGR, a PF e as Forças Armadas. Não podemos perder mais estruturas, ou ele atinge o objetivo.
E o objetivo dele é algo como um capitalismo distópico, no qual milicianos escravizam o resto da população. É a destruição. É a morte.
E ele tem conseguido avançar lentamente nessa direção.
Nos últimos 30 anos, ouvi várias histórias de que "Pipi Popô" era uma música do Ultraje, de Lulu Santos, dos Paralamas, Leo Jaime ou até de Sergio Malandro.
Com o perdão de quem já conhece essa história, mas vamos contá-la mais uma vez...
Há uns 20 anos, quando entrei na faculdade de jornalismo, eu me aproximei dos alunos mais esquerdistas do curso (até porque nem havia direita por lá). Nessa época, eu me dizia esquerdista.
Mas minhas divergências com a esquerda foram me expurgando do grupo. Ao ponto de, uns 10 anos depois, as críticas que eu fazia às gestões petistas me premiarem com toda uma nova leva de amizades, dessa vez, de direita.
Thaís Oyama cometeu um erro comum a quem apresenta programa ao vivo, que é o de se perder com o relógio. O problema é que quem trouxe o vídeo às redes sociais o tratou como um erro deliberado para prejudicar Guilherme Boulos.
Pior, muita gente não estava entendendo que se tratava do final de uma longa sabatina, e comentava como se deliberadamente tivessem ativado o cronômetro para reduzir o tempo de resposta de Boulos em um debate.
Com esse entendimento, a indignação explodiu. E muita gente passou a xingar a jornalista de todo tipo de absurdo. E a pregar contra a imprensa, defendendo boicote não só à Folha, mas a basicamente qualquer jornal.
Falta mais contexto. Ele não teve apenas 44 SEGUNDOS, mas 45 MINUTOS. Não era debate, era sabatina. Era como se o Jornal Nacional recebesse um candidato para uma entrevista cronometrada. O tempo acabou, o microfone cortou.
Mas é bom que, assim, a gente relembra que desinformação e ódio da liberdade de imprensa não é exclusividade de um dos polos.
Nesse formato, não existe isso de cronômetro parar para a pergunta. Todo mundo lembra das perguntas quilométricas que a bancada do JN fazia aos entrevistados com o cronômetro rolando.