Manaus é o prego no caixão do discurso de imunidade coletiva. E esse artigo recente com participação da Ester Sabino, da @marciacastrorj e outros explica o tamanho do problema. Segue um fio com interpretações minhas e o quão mais complicado 2021 fica.

Como a figura do artigo mostra, depois de uma primeira onda de hospitalizações muito alta, Manaus passou por 7 meses com hospitalizações estáveis. Mesmo com reabertura. De repente, no fim do ano, vem essa segunda onda pior do que a primeira que colapsou o sistema de saúde.
A explicação que poderia se dar para a estabilidade é a imunidade coletiva, ou imunidade de rebanho. Trabalhos como o Epicovid e o estudo de anticorpos contra COVID entre doadores de sangue chegaram a estimar que até 76% dos manauara tiveram COVID até o meio de 2020.
Então tantas pessoas teriam tido COVID no começo de 2020 que a grande maioria (76%) estaria imune, “vacinada naturalmente” ao custo de muitas mortes. Isso fica até acima do esperado (67%) para um vírus com a taxa de transmissão do coronavírus (R0 de 3) que se calculou.
Mas de repente temos essa onda de casos absurda desde o fim do ano. Que coincide com festas de fim de ano e com a detecção de novas variantes (como a P.1) com mutações que podem aumentar a transmissão do vírus e diminuir a imunidade contra ele.
Levantam 4 possibilidades para o que vemos. Que não necessariamente se anulam, pode ser uma combinação desses fatores.
1- Estudos epidemiológicos estimaram mais casos e mais imunidade do que realmente aconteceu e a cidade continuou bem abaixo da imunidade coletiva.
Como os anticorpos contra o vírus caem com o tempo, testes sorológicos podem começar a dar negativo para quem já teve o vírus. E estudos epidemiológicos precisam corrigir isso, sabendo que se encontram 50% das pessoas anticorpos depois de meses, o número real deve ter sido maior
Por essa interpretação, estudos anteriores teriam exagerado nessa extrapolação e a proporção de quem realmente teve COVID em Manaus seria menor do que 76%. E a circulação de fim de ano teria misturado quem se protegeu e ainda era vulnerável com quem estava com COVID.
2- Pode ser a queda da imunidade. Não sabemos por quanto tempo as pessoas que se curaram continuam protegidas. O estudo mais completo, feito no Reino Unido, viu que por 6 meses mais de 80% das pessoas não se reinfectam. Mas o surto lá já passou de 8 meses.
3- Novas variantes podem estar escapando da imunidade prévia. Pode ser que as mutações que a variante que já domina os casos em Manaus (P.1) sejam suficientes para ele escapar da imunidade natural. E os casos de reinfecção por novas variantes dão força a essa ideia.
4- As novas variantes podem ser mais transmissíveis. E isso aumentaria o limiar de imunidade coletiva para algo como mais de 80% (o artigo não da números para isso). Então mesmo uma região que já estivesse “protegida” contra o SARS-2 regular pode ter surtos com variantes.
Das 4 explicações, as duas primeiras me soam as menos importantes. Porque são fatores que aparecem em outros lugares sem uma ressurgência de casos que colapsa o sistema de saúde.
As comparações feitas até agora mostram que a estimativa de 76% não deve estar muito errada. E mesmo se o número real fosse mais próximo de 50%, ainda seria muita gente imune e bem próximo de uma “imunidade coletiva“. Não teríamos mais internações agora do que no começo de 2020.
Podemos estar presenciando o fim da proteção imune de quem se curou. Mas seria de se esperar surtos parecidos em outras regiões que tiveram um pico no começo de 2020 como Manaus teve. E isso não foi visto em outras regiões como na Itália.
O que é bem mais único de Manaus do que outras regiões como a Itália, que teve surto cedo, ou Peru, que teve mais de 70% da população infectada, são variantes novas. Que têm mutações que poderiam contribuir para as duas coisas, serem mais transmissíveis e escaparem da imunidade.
E, Reino Unido e África do Sul, onde se descobriram novas variantes também, os casos e mortes estão subindo. O Reino Unido teve um surto forte no começo de 2020 e mesmo em lockdown viu os casos subirem conta da variante mais transmissível B117.
Infelizmente vamos descobrir se variantes causaram isso na prática e em pouco tempo. Porque já estão presentes no Brasil todo. Se podem infectar quem já teve, esquece imunidade de grupo.
Se são tão transmissíveis, precisamos fechar muito mais para ver uma situação tão ruim quanto 2020. Ou não fechamos e vemos o que acontece em Manaus se repetir em outras cidades.
E pode esperar mais mutações de um vírus que acabou de entrar em humanos. Isso é evolução.
Precisamos de vacinas. Urgentemente. Já temos um velocímetro de vidas perdidas enquanto não vacinamos, girando em mais de 200 mil. Ele vai girar mais rápido agora.
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Sempre falo de Manaus como preocupante pelo vírus ainda circular com tantas pessoas imunes.
Esse estudo dá uma noção de pq variantes podem ter surgido lá. Em laboratório, o coronavírus só desenvolve as mutações da variante P.1 na presença de anticorpos. biorxiv.org/content/10.110…
A pressão evolutiva para vermos as variantes que começam a circular pode ser justamente a imunidade em uma população que já teve muitos casos de COVID e ainda tem muitos casos. Contar com imunidade coletiva pode ser a receita para novas linhagens que escapam da imunidade.
@otavio_ranzani tô vendo uma maré bem grande na direção de escape de imunidade.
A dinâmica de vacinas particulares e muito mais:
"Mas há uma terceira razão, mais importante, para se preocupar com a crescente desigualdade da vida americana: uma lacuna muito grande entre ricos e pobres mina a solidariedade que a cidadania democrática exige."
"Conforme a desigualdade se aprofunda, ricos e pobres vivem vidas cada vez mais separadas. Os ricos mandam seus filhos para escolas particulares (ou escolas públicas em subúrbios ricos), deixando as escolas públicas urbanas para os filhos de famílias que não têm alternativa."
"Academias privadas substituem os centros de recreação e piscinas municipais. Comunidades residenciais de luxo contratam seguranças particulares e contam menos com a proteção da polícia pública. Um segundo ou terceiro carro elimina a necessidade de contar com transporte público."
Para vacinação pública, 'Para que essa ansiedade, essa angústia?', "só" 70 milhões de doses causariam "frustração em todos os brasileiros" e "seriam mais uma conquista de marketing, branding e growth".
Se estivéssemos comprando toda e qualquer dose possível, vacinação feita por empresas seria complementar. A partir do momento que dispensamos acordo e atrapalhamos o fornecimento de insumos, criamos uma fila e agora vamos vender vagas na frente dela.
Próximo passo é o quê? "Oxigeneria" em Manaus, onde você tem acesso diferenciado ao oxigênio em UTIs antes de bebês prematuros no SUS?
"Recebemos sim essa oferta de 70 milhões de doses de vacinas que poderiam cobrir quase todos grupos prioritários em grandes cidades, mas escolhemos em nome dos brasileiros que eles preferem morrer de asfixia."
70 milhões de doses de vacinas da Pfizer não acabariam com a COVID no Brasil, além de serem difíceis de transportar e aplicar fora de grandes metrópoles. Mas poderiam salvar dezenas ou centenas de milhares de pessoas se aplicadas em grupos prioritários nos grandes centros.
Levantaram 3 mil normas do governo de 2020 mostrando como as mais de 200 mil mortes pode COVID são uma escolha consciente de gestão federal.
"Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência da parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço para tantos eventos...
revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo."
Aproveita, se cuida, fica em casa se puder e ajuda a ter menos casos e mais oxigênio até chegar na vez de todo mundo.
Nunca teve vacina desenvolvida enquanto uma pandemia acontecia. Vamos trabalhar pra entrar para história com a melhor saúde e com mais vidas salvas.
Esperando o dia que vou pro posto de saúde ouvindo Partita em Lá menor do Bach na flauta, seja pra tomar a vacina da Fiocruz ou do Bubutantan. Ou o que mais vier e for aprovado :)