O fio do @kakobelmont sobre anarquismo e crítica anti-colonial é realmente muito bom. Pessoal tá pedindo pra eu falar sobre marxismo e crítica anti-colonial... A real é que essa história é complexa.
Eu já concebi que Marx era etnocentrico e pronto, uma posição preguiçosa, mas embasada em alguns escritos dele dos anos 1850. A verdade é que o limite do pensamento de Marx é, sim, europeu, mas isso não significava que ele não entendia o colonialismo ou o invisibilizava.
Tanto os capítulos 24 e 25 do Capital são ótimos pontos de partida para essa reflexão, assim como algumas passagens dos Gundrisse. Para Marx, o colonialismo era o segredo da origem do capitalismo, articulado na ideia de "acumulação primitiva de capital".
Primitiva porque, por meio da espoliação e do saque, a Europa roubou metais preciosos e demais recursos do resto do mundo (em especial das Américas) e esses recursos permitiram o surgimento do capital como relação social -
p. ex., usar o ouro e a prata roubado dos povos ameríndios para comprar terra e trabalho, convertendo elas em mercadorias.

Não tem mais-valia quando você literalmente arranca à força o sujeito dos seus meios de subsistência, né?
Há registros em textos esparsos e cartas em que Marx entende que a espoliação colonial segue sendo regra geral e que não fica restrita ao início do capitalismo. Mas o termo "acumulação primitiva" pegou, né?
De fato, se considerarmos o Capital, o foco de análise de Marx é justamente a sociedade europeia do trabalho assalariado do século XIX. Isso gerou algumas críticas interessantes mais recentemente:
Uma que eu gosto muito, do historiador Walter Johnson, é baseada numa pergunta hipotética: se Marx usasse um casaco de algodão, ao invés de linho, como exemplo nos capítulos iniciais de sua obra, isso não mudaria a nossa percepção do capitalismo?
Isso porque, na época de Marx, o algodão, ao contrário do linho, era um produto global, obtido nos mais diferentes cantos do mundo. E na imensa maioria dos lugares, por relações de trabalho coercitivas (escravidão, peonaje, zamindari etc).
Ao visitar as fábricas de algodão em Lancashire, Marx viu a transformação do algodão internacional em tecido inglês (para ser comercializado ao redor do mundo). Mas há pouco sobre como é obtida essa matéria-prima inicial.
Disso se derivou uma leitura etapista dentro do marxismo da época (mas no meu entendimento, não secundada pelo próprio Marx): as espoliação e a coerção fariam parte de uma realidade "primitiva" ou "pré-capitalista".

Somente quando o trabalho assalariado fosse comum a todos...
...o capitalismo teria início.

Esse foi um pensamento comum da Segunda Internacional, por exemplo. No célebre julgamento contra o Rei Leopoldo, da Bélgica, a acusação dos socialistas era de que a barbárie que culminou em cerca de 10 milhões de mortos no Congo...
... não era sequer capitalista (pois, afinal, o capitalismo pressupunha relações de trabalho capitalistas).

Rosa Luxemburgo foi uma das primeiras teóricas a advertir que a barbárie, a acumulação violenta, não era primitiva, mas sim fundante do capital.
Um automóvel podia ser uma peça maravilhosa de engenharia fabril e Ford podia pagar 5 dólares para seus operários.

Mas a borracha dos pneus, os óleos para lubrificação, os metais obtidos...tudo vinha manchado de sangue.
Nunca havia existido capital sem formas de espoliação. Não teria porque acreditar em um capitalismo sem barbárie (o que ajuda a explicar a frase de Rosa, "socialismo ou barbárie").
Jairus Banaji em seu livro "Theory as History" insiste que não apenas há relações de espoliação e saque no capitalismo, mas também que antes do capitalismo já existiam relações capitalistas com terra e mão-de-obra.
Dessa forma, o que distinguiria o capitalismo de outros modos de produção não seria o "trabalho livre" (que ele chama de ficção da economia política), mas sim os seus impulsos por acumulação e por competição.
Assim, o colonialismo seria efetivamente integralizado na história do capitalismo. Não se trata de arcaísmo, mas uma relação com o trabalho e com a terra ancestral que é ressignificada para a melhor competição nos moldes capitalistas.
(p. ex., o trabalho semi-escravo de crianças nas minas de cobalto no Congo pode ter significado uma enorme vantagem competitiva para gigantes como Apple ou Google)

theguardian.com/global-develop…
Assim, Marx realmente não deu conta de uma posição anticolonial que, a rigor, foi se construindo de forma sistêmica já no final da sua vida (o que não quer dizer que ele não levantou pontos críticos fundamentais sobre o colonialismo).
O caminho que o marxismo seguiu, até teóricos como Rosa Luxemburgo e Lenin apontarem o quanto o capitalismo seguiu repetindo suas "acumulações primitivas", foi de considerar isso tudo como uma espécie de "pré-história" do capitalismo. Uma posição etapista, é claro.
Isso porque essa história se repete ainda hoje. E Marx aponta justamente esse caminho no capítulo 24, a ideia de um pecado original que é renovado todo dia.

É desapropriar a força uma comunidade indígena pra fazer pasto para vender carne gourmet pra China.
É usar trabalho escravo para obter cacau e vender chocolate mais barato.

Exemplos não faltam, nos dias de hoje, de como uma teia de relações de espoliação são constitutivas do capitalismo.
A ficção do trabalhador livre, que pode escolher seu patrão e seu emprego, mal dá conta de uma parte muito pequena do mundo. Geralmente, uma parte branca do mundo, convém ressaltar.
Em suma, se Marx não era um campeão anticolonial em seu tempo, o marxismo carrega consigo o potencial de se somar às lutas anticoloniais, inclusive acendendo um alerta: só há emancipação do trabalho livre quando não houver mais o trabalho escravo.

Ainda não chegamos lá.
Leituras, para além das sugeridas aqui, é do Kevin Anderson (Marx nas Margens), do Banaji (citado acima), do próprio Marx, da Rosa e do Lenin.

O texto de Johnson se chama "The pedestal and the veil".

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