Fio-resenha de domingo:

"Tea War: A History of capitalism in India and China", de Andrew Liu, é um daqueles livros difíceis de largar. Ele te ganha pela tese: e se o capitalismo não se explicar pelas relações capitalistas de produção?
A dúvida que ele planta é por meio do chá, o maior produto de exportação da economia chinesa no século XVIII, quando a Inglaterra ainda pagava toneladas de prata para garantir o chá com bolachas da corte.
Aliás, não só da corte. A Revolução Industrial não seria a mesma sem as drogas não-europeias. Chá, café, açúcar, tabaco...todos eles estimulantes que foram incorporados na dieta dos operários britânicos.

O chá também virou a bebida oficial do operariado industrial.
A indústria chinesa do chá era uma manufatura tipicamente pré-capitalista. Os camponeses plantavam as folhas de chá e no âmbito doméstico faziam uma espécie de pré-preparo. Um comprador então passava pelo vilarejo e comprava todo o chá e revendia a uma casa especializada.
Na casa de chá, o preparo se convertia em manufatura especializada e de lá ele era encaminhado para o porto de Cantão (Guangzhou), onde os ingleses compravam o produto.

O espaço da competição era mínimo entre as casas, tudo era regulado pela burocracia Qing.
Ainda assim, o custo para a balança comercial inglesa foi ficando pesado. E conforme o ópio entrou nas exportações britânicas para a China (desequilibrando a balança), os comerciantes europeus passaram a negociar o preço do chá, reduzindo o valor pago.
Outro trunfo foi usado pelos ingleses no século XIX: levar o chá para Assam, na Índia. Como a colonização do território indiano estava cada vez mais consolidada, o subcontinente passou a ser o laboratório britânico para novas exportações (de novo, o ópio chama atenção aqui).
Só que o sistema inglês ainda era inferior ao chinês. Os ingleses, doutrinados no liberalismo, queriam aumentar a produtividade pelo trabalho ao mesmo tempo que acreditavam que o trabalhador tinha que ser "livre" para buscar os melhores contratos de trabalho.
O que acontecia é que ninguém ficava muito tempo trabalhando com chá. Trabalho pesado e repetitivo que fazia com que muitos indianos não permanecessem por muito tempo.

A virada, nos anos 1850-60, foi quando a Inglaterra "flexibilizou" seu liberalismo.
Começaram a surgir contratos para obrigar presos a fazerem trabalhos forçados nas plantações de chá. E depois da revolta dos Cipaios (1857), não faltou gente sendo presa em Assam e outras regiões, muitos sendo transformados em "coolies".
(coolie é uma forma de trabalho bem específica do Pacífico no século XIX; eles são esses trabalhadores que são recrutados em frentes de trabalho e enviados para outra parte do planeta, geralmente endividados até o talo)
Então vejamos: o sujeito é preso e para mitigar a pena, entra num contrato de trabalho com um recrutador. Mas o que ele não sabe e que o recrutador vai vender o contrato dele para uma firma estrangeira e quando vê, o cara sai da Índia e vai parar em Uganda. E sem dinheiro.
No caso do chá indiano, a exploração intensa e um regime de trabalho análogo à escravidão foi a base do crescimento da indústria do chá. Os intelectuais e políticos britânicos sabiam que estavam apelando para um trabalho não-livre, mas argumentavam que...
...os indianos ainda não estavam "preparados" para o trabalho livre. Esse sistema permaneceu na indústria do chá indiana até a década de 1930.

E só foi realmente extinto com a independência indiana, em 1947.
E a China? Bom, na corrida pelo chá, os chineses foram ficando para trás. Japão, Sri Lanka, todo mundo foi passando os chineses, que viram uma campanha mundial de contrapropaganda afetando suas exportações, questionando a higiene e a qualidade do chá chinês.
Com isso, as vendas caíram enormemente. E aí, os compradores de chá ganharam destaque. Eles passaram a pagar menos os camponeses, o que lhes permitiu endividar esse pessoal.

Andrew Liu não precisa, mas o campesinato chinês estava preso em um sistema muito semelhante...
...ao de "peonaje" na América Latina, mas com uma diferença: os camponeses não tinham por hábito sair de suas terras, o que dava imensa vantagem aos compradores de chá.

No final, para o pensamento nacionalista chinês, esses compradores passaram a ser vistos como...
... agentes do imperialismo. Na Índia, os nacionalistas manifestavam seu repúdio ao sistema de coolies e aos trabalhos forçados. E juntando todos, uma convicção: de que o caminho para a independência passava pela construção do trabalho livre e assalariado.
Como Jairus Banaji coloca, contudo, essa é a ficção mais poderosa do capitalismo. O trabalho livre nunca está totalmente livre das suas relações pré-capitalistas.

Mais do que as relações de produção, a competição é a chave do capitalismo global.
Ainda hoje ficamos perplexos como gênero e raça, categorias de dominação forjadas antes do capitalismo, são tão importantes para o sistema funcionar e se reproduzir, não é mesmo? O quanto não se ganha mantendo o racismo e o machismo de pé, economicamente falando?
No caso específico do chá, a ficção do trabalho livre foi uma espécie de norte dos reformadores nas colônias, dos nacionalistas e desenvolvimentistas. A crença na "falta" se efetivou também no marxismo e em suas categorias como "semi-feudal" para falar da colonização.
Em suma, a política econômica criou o seu telos europeu fora da Europa, de que a emancipação política só é possível quando o trabalho for livre. Como o capitalismo nunca construiu um trabalho livre e assalariado a todos, a emancipação política nunca se viabilizaria por completo.
Faz falta no trabalho de Liu uma investigação dos "de baixo", ou seja, como se dá a luta de classes sem a classe trabalhadora livre e assalariada. Mas isso tem já cada vez mais acúmulo, inclusive no Brasil.

E as pessoas lutam.
Elas podem não usar as mesmas armas tradicionais dos explorados do centro do capitalismo, mas não estão inertes. O fazer-se de classe segue por muitos caminhos para além dos modelos pré-prontos da economia política.
Tomara que tenha ficado legal. Agradeçam ao baby, que deixou eu montar o fio bonitinho enquanto ele lê pra mim. 😁

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