O massacre do Carandiru:
A Casa de Detenção de São Paulo (SP), mais conhecida como complexo penitenciário do Carandiru ou apenas Carandiru, em razão de ser localizado em bairro homônimo na zona norte de SP, foi palco da carnificina instaurada no dia 2 de outubro de 1992.
Projetado para abrigar 3.300 presos, o Carandiru, à época do episódio, alojava mais de 7 mil detentos por conta de um aumento repentino na criminalidade da região, estando notoriamente superlotado. No mesmo período, foi considerado o maior presídio da América Latina.
O episódio foi concentrado no pavilhão 9 do presídio, onde inicialmente eclodiu a rebelião. Ainda pela manhã, no segundo andar do prédio, dois detentos — “Barba” e “Coelho” — iniciaram uma briga, que teria se alastrado pelos outros andares e envolvido dois grupos rivais.
Sidney Sales, em entrevista ao “El País”, sobrevivente do massacre, contou que brigas eram comuns no Carandiru, de forma que, em princípio, não houve muita agitação. A revolta da população carcerária teria sido motivada, na verdade, pela omissão dos agentes penitenciários.
Eles não removeram um prisioneiro que ficara gravemente ferido na briga, o deixando sangrando no chão. Tal detento possuía muitos companheiros que, indignados, iniciaram a rebelião — evento também normal naquele complexo, adicionou Sales.
Por volta das 14h, o tumulto era generalizado e todos os carcereiros já evacuaram o presídio. Simultaneamente, um incêndio ocorria (nas cozinhas, segundo Sales). Os detentos não revelaram nenhuma reivindicação até o momento, mas o diretor do Carandiru requisita reforços.
A tropa solicitada estaciona em frente ao pavilhão 9, sendo composta por cerca de 320 policiais de diversos batalhões de elite da Polícia Militar (PM). O grupo é comandado pelo coronel Ubiratan Guimarães, e a intervenção tem a autorização da Secretaria de Segurança Pública de SP.
O relato da força policial é de que, enquanto aguardavam ordens, armas eram atiradas pelas janelas contra os policiais — que, segundo o cel. Ubiratan, eram apenas 86. Para acalmar a rebelião, eles romperam a barricada e adentraram o pavilhão 9.
Depois de controlarem a situação no térreo, eles avançam ao primeiro andar, onde ultrapassam uma barricada e assassinam 26 detentos; o cel. Ubiratan foi supostamente atingido por uma explosão ao tentar alcançar o 1º andar e teve de ser levado ao hospital, deixando a operação.
No 2º andar, a polícia relata que centenas de presos os emboscaram, alvejando os agentes com facadas, estiletes sujos de sangue contaminado, sacos com excrementos e até tiros, o que teria justificado o extermínio dos detentos em tocaia, por constituir legítima defesa.
Segundo o cel. Ubiratan, entrevistado pela Super Interessante, afirmou que “Só morreu quem entrou em confronto com a polícia”. Guimarães manteve que, fosse a ordem de extermínio dos detentos, a massacre teria sido de proporções bem maiores.
As testemunhas do ocorrido e a perícia, em contrapartida, descrevem uma cena completamente divergente daquela narrada pelos perpetradores de todas as mortes na rebelião.
Grupos de direitos humanos alegaram que, mesmo antes da entrada da tropa no pavilhão, o conflito estava majoritariamente apaziguado e que muitos já haviam se rendido e entregado as armas que bradavam — que, em sua maioria, eram armas brancas e improvisadas.
A promotoria, durante o julgamento do caso, informou que, de fato, mais de 300 policiais participaram da operação — a maioria sem crachá de identificação. Ao ver que a PM adentrava o pavilhão, MC Kric, ex-detento do Carandiru, corroborou a versão de que os presos se renderam.
MC Kric, que estava detido no pavilhão 8 do Carandiru, recorda do que escutou assim que a PM iniciou a operação: “É um barulho ensurdecedor. Quando eles entram no pavilhão nove ouve-se muito tiro, mas muito tiro mesmo, com uma gritaria”.
Em entrevista à Rádio Brasil Atual, o rapper contou que, mesmo antes de receberem ordens dos agentes, os prisioneiros se despiram e colocaram as mãos na cabeça. A perícia ratificou a tese de que a maioria foi exterminada: menos de 25% dos assassinados morreram fora da cela.
O perito Osvaldo Negrini, durante o posterior julgamento do cel. Ubiratan, explicou aos jurados que 75% dos presos morreram nas celas por disparos feitos de fora para dentro. A conclusão foi taxativa: o assassinato dos presos fora incentivado ou, no mínimo, autorizado
O laudo do Instituto de Criminalística determinou que “As trajetórias dos projéteis disparados indicavam atirador(es) posicionado(s) na soleira das celas, apontando suas armas para os fundos ou laterais”. Além disso, 70% dos tiros teriam sido disparados à cabeça ou ao tórax.
Sidney Sales narrou o momento em que, enquanto ajoelhado e rezando, juntamente a outros 9 detentos que faziam o mesmo, viu um policial disparando pela portinhola de abertura da porta. Um dos tiros, após ricochetear na parede, alojou-se na nuca de um preso.
“Estevão morreu do meu lado sem dar um grito, foi morte instantânea. Começou a se formar uma poça de sangue, e aí veio o pânico”, afirmou Sales. O autor dos disparos ainda ameaçou atirar novamente se ninguém o dissesse da quantidade de pessoas na cela, e Sales o informou.
Por volta das 18h, os policiais passaram a ordenar que os presos se despissem e descessem para o pátio. Sales conta que havia dúzias de corpos no chão, “alguns ainda vivos, gritando e gemendo”. Se aproximando das escadas, observava-se que os horrores se estendiam à tortura.
Policiais estavam posicionados de ambos os lados do corredor e agrediam os detentos com cassetetes e coronhadas. Além disso, “Os policiais abriram as portas, e de cada 10 presos que passavam eles empurravam 2 ou 3 no fosso. Imagina, uma queda de cinco andares”, recordou Sales.
Para completar a operação, os próprios presos foram escalados para carregar os feridos e os cadáveres até o pátio. MC Kric relembra o momento: “Quando cheguei, encontrei vísceras e muito, muito sangue no chão. Tinha menino novo que morreu, muitos nem foram condenados”.
“A gente esperava a morte a qualquer momento, achando que os policiais voltariam”, acrescentou MC Kric, que acredita que os funcionários do pavilhão nove tinham condição de evitar o massacre, mas optaram por um rumo de ações que resultou na chacina.
A razão oferecida pela polícia para a movimentação dos corpos foi de facilitação para a retirada destes por carros do Instituto Médico Legal; entretanto, o ato provou ser conveniente para os envolvidos, visto que alterou o cenário do evento e dificultou a investigação da perícia.
No total, a operação policial para apaziguar uma rebelião resultou na morte de 8 prisioneiros — divulgou a PM. O número oficial, após a investigação da perícia, é de 111 encarcerados mortos, dos quais 102 foram alvejados com tiros e 9 restaram vítimas de objetos cortantes.
Do lado da PM, 22 agentes ficaram feridos (ninguém baleado); nenhum foi morto. Do total de 362 armas utilizadas, 515 disparos foram realizados. As apreensões do armamento dos presos contabilizaram 13 revólveres, 165 armas brancas, 25 pedaços de ferro/canos e 1 marreta de ferro.
Em junho de 2001, o coronel Ubiratan Guimarães foi condenado a 632 anos de reclusão em primeira instância, sendo responsabilizado por 102 das 111 mortes oficialmente registradas. No ano seguinte, sua eleição a deputado estadual de São Paulo o rendeu foro privilegiado.
Em razão disso, seu recurso foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça. Em fevereiro de 2006, por vinte votos a dois, a tribuna de desembargadores concluiu que ele agira em “estrito cumprimento do dever legal”, excluindo a ilicitude de seus atos criminosos.
Em setembro do mesmo ano, o então deputado foi assassinado em seu apartamento. No muro do prédio onde morava foi pichada a frase "aqui se faz, aqui se paga”. A pessoa indiciada pelo crime foi a namorada do coronel, que foi absolvida pelo Tribunal do Júri por falta de provas.
Entre 2013 e 2014, 74 PMs envolvidos no massacre foram condenados em cinco júris diferentes, com penas entre 48 e 624 anos de prisão em regime fechado; contudo, os réus recorreram em liberdade e, até hoje, não cumpriram um dia de pena.
Em novembro de 2018, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu manter a anulação dos julgamentos que condenaram os policiais, proferida em 2016. Por força da decisão, os 74 PMs serão submetidos a novo júri popular.
Anos atrás, o programa do Gugu Liberato, Domingo Legal, exibiu a vidente Socorro Leite visitando o Carandiru, antes de ele ser demolido. Ela afirma que viu coisas horríveis que a fez sair correndo, chorando e gritando.
A médium, famosa por se comunicar com espíritos, disse que em algumas celas existiam almas perdidas que estavam sofrendo muito: “É horrível, que sofrimento, meu Deus... Aqui estão os espíritos que lideravam as rebeliões. Têm que cuidar dessas almas”.
Nos dias de hoje, é impossível encontrar o vídeo nas redes sociais, já que ele é mantido em sigilo pelo SBT. Apenas quem assistiu na época, sabe o que aconteceu naquele dia, que foi considerado sombrio por muitos telespectadores.

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