COMUNISMO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A legislação da Ucrânia equiparou o nazismo e o comunismo. Na prática, o desiderato da lei foi justificar a alteração de nomes de logradouros públicos e a remoção de estatuetas soviéticas.
Em julho de 2019, a Corte Constitucional da Ucrânia considerou esta lei constitucional. Convém apresentar o pano de fundo, ou seja, o contexto histórico-político dessa medida.
Na década de 30 do século XX, milhões de ucranianos morreram de fome na Ucrânia Soviética, fato que ficou conhecido como Holodomor. Josef Stalin exigiu dos camponeses ucranianos um desempenho de produção e coleta de cereais que os arruinou. Famintos, muitos morreram.
Até mesmo relatos de canibalismo e transtorno mental foram apresentados pelas autoridades. O evento genocida já foi comparado por muitos historiadores com o genocídio de judeus, na Alemanha nazista.
Na Checoslováquia, a experiência comunista também deixou suas chagas sociais. Para se ter ideia, no pórtico do Museu do Comunismo em Praga, na República Tcheca, o comunismo é retratado como “um sonho”, seguido de uma realidade que se convola em “pesadelo”.
Registro da minha visita ao museu do Comunismo na Antiga Checoslováquia.
Mulheres que se opunham de maneira contumaz ao governo comunista da Checoslováquia chegaram a ser enforcadas. Outros cidadãos eram executados com metralhadoras porque tentavam fugir do país, cruzando a fronteira. Aliás, o mesmo ainda ocorre na Coreia do Norte.
Registros forográficos. Fotografei no próprio museu e inseri os comentários abaixo.
Na saúde pública, os SANOPS, hospitais de excelência, eram reservados para autoridades do regime. O povo mais humilde não tinha acesso aos cuidados médicos dispensados nesses centros. A expectativa de vida durante esse período caiu. Após a queda do regime, subiu novamente.
O meio ambiente foi devastado. A ênfase na indústria pesada de aço aumentou a concentração de dióxido sulfúrico, que, em algumas regiões, elevou-se para 1500mg/1m³.
No comércio local, faltavam itens básicos como papel higiênico. Muitas medidas econômicas controversas foram adotadas na Checoslováquia, que arruinaram inúmeros cidadãos. Sociedades empresárias foram nacionalizadas.
Campos de concentração para trabalho foram implementados, exigindo-se fardamento das pessoas confinadas. Para fruir férias no exterior, era necessária autorização do Governo. O deferimento só ocorreria se o destino turístico fosse em países como Iugoslávia, Hungria etc.
Crianças na escola, aprendendo a utilizar máscaras de gás.
O interrogatório de pessoas presas incluía torturas por meio da extração de dentes, agulhas sob as unhas e chute nos testículos. Outra maneira de prospectar o depoimento era ministrar uma droga chamada escopolamina.
Réplica da sala de interrogatório.
10% dos Juízes foram substituídos na Checoslováquia comunista. No lugar deles, o Governo colocou rábulas egressos da Faculdade de Direito dos Trabalhadores.
Nessa época, Josef Stalin erguia estátuas faraônicas de si mesmo, ultrapassando 15 (quinze) metros de altura, que eram vilipendiadas pelo povo faminto. Somente depois que Nikita Khrushchov expôs os horrores e crimes praticados pelo Stalin, a estátua milionária foi implodida.
Associações foram erradicadas, padres foram perseguidos e, claro, os desfiles cívicos eram obrigatórios.
Relatos de sobreviventes foram documentados e são exibidos em museus até os dias de hoje. Há prova testemunhal e documental. Inúmeros registros fotográficos e livros comprovam esses acontecimentos históricos.
Na Sérvia, antiga Iugoslávia, a palavra “comunismo” nem sempre é recebida de maneira cordial por pessoas mais velhas. Jovens da Polônia, por sua vez, ficam surpresos quando são informados de que, na América Latina, existem partidos comunistas no século XXI.
Por todas essas razões, o Tribunal Constitucional da Ucrânia considerou constitucional a legislação que equiparou o comunismo e o nazismo naquele país. Diferentemente, no Brasil, não se faz esta equiparação.
Aqui, é crime veicular emblemas com a suástica ou a cruz gamada (art. 20, § 1º, Lei n.º 7717/89), mas isso não é extensível ao comunismo. Existem, inclusive, brasileiros stalinistas.
Isto posto, suponhamos que, à semelhança do que sucedeu na Ucrânia, uma lei federal brasileira proíba a difusão de ideias e símbolos comunistas no Brasil. Atualmente, há projetos de lei dessa natureza em trâmite no Congresso Nacional.
A referida norma, se aprovada, traduziria uma intervenção juridicamente indevida no âmbito de proteção da liberdade de expressão?
Apesar dos dados históricos detalhados linhas acima, a resposta é afirmativa. O âmbito de proteção da liberdade de expressão, tal como consagrada pela Constituição de 1988, protege manifestações comunistas.
Uma pesquisa originalista demonstra que, na Assembleia Nacional Constituinte, havia 3 (três) constituintes filiados ao PC do B e 3 (três) constituintes filiados ao PCB.
Só por isso já é possível dizer que, em uma perspectiva original, o comunismo está abrangido pelo âmbito de proteção da liberdade de expressão, não sendo possível, juridicamente, equipará-lo ao nazismo.

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