SOBRE A IDEIA DE VEDAÇÃO DO RETROCESSO NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

"Em que medida podemos tomar algum tipo
de precaução até para evitar retrocessos na legislação ordinária?", perguntou o constituinte JORGE HAGE.
E continuou: "[...] como assegurarmos que as coisas continuem a evoluir e que não haja retrocessos ou involuções na legislação ordinária? Esta é uma primeira preocupação que tenho".
Calmon de Passos, com quem debatia na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, consignou:

"... para mim o importante é que a Constituição não crie empecilhos, mas não vejo como a Constituição possa impedir retrocesso."
E arrematou Calmon de Passos: "Só quem impede retrocesso é a vontade política da Nação, porque não há nenhum retrocesso gratuito".

FONTE: Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Suplemento 81. 20/6/1987. Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais.
De todos os "princípios" constitucionais invocados, um dos mais misteriosos se chama "vedação do retrocesso". Primeiro, não se sabe ao certo em que grau hierárquico ele teria incidência. Impediria retrocessos instituídos por lei? Por emenda? Por uma nova Constituição?
Esta é a primeira pergunta que precisa ser respondida. Na doutrina, há quem defenda que uma nova Constituição não pode retroceder (COMPARATO). Prevalece, no entanto, a corrente doutrinária pela qual o constituinte originário não se submete a limites jurídicos.
Quando se defende que uma emenda à Constituição não pode instituir "retrocessos", na prática, tem-se uma AMPLIAÇÃO das cláusulas pétreas. Todo limite jurídico a uma emenda à Constituição é, ontologicamente, uma cláusula pétrea. É possível ampliá-las?
A ampliação de cláusulas pétreas tem um efeito colateral pernicioso: subtrai-se das gerações vindouras a sua liberdade de viver a Constituição à sua maneira, sacramentando um governo dos mortos sobre os vivos. Hipertrofiar cláusulas pétreas equivale a atrofiar a autodeterminação.
Por fim, se a vedação ao retrocesso obstaculiza novas leis, tal significa que teremos "leis irrevogáveis". Esta categoria, sim, é inconstitucional (CARRAZA). Admitir leis imunes à revogação equivaleria a instituir verdadeiras cláusulas pétreas infraconstitucionais.
Portanto, a primeira pergunta que deve ser feita a quem proclama esse "princípio" é qual a sua extensão obstaculizadora. Uma nova Constituição? Emendas? Leis? Simplesmente, não há resposta segura para isso e todas têm sérios inconvenientes.
Outro aspecto consiste em saber ONDE está previsto este "princípio". Parte da doutrina aponta como sede o art. 3º, II, da CF/88: "garantir o desenvolvimento nacional".

Sucede que o contexto em que essas palavras foram empregadas nem de longe representa a ideia pretendida.
"Desenvolvimento nacional" é uma referência à política econômica que marcou o século XX (após a década de 30), não a ideia de retrocesso na conquista de direitos. Uma pesquisa nos anais da Assembleia Nacional Constituinte certamente revelará que esse princípio não foi cogitado.
A ideia de "nenhum direito a menos" pode ser muito conveniente para quem é titular de direitos, mas pode ser excessivamente onerosa para quem é titular de deveres. Como lembra a doutrina mais moderna (SUNSTEIN & HOLMES), direitos têm custos.
Às vezes, numa perspectiva de contenção de gastos, pais cancelam a matrícula dos filhos na natação (esporte) ou no ballet (cultura). Ou vendem o carro (transporte). Contingências da vida podem exigir sacrifícios. Um passo para trás pode ser importante para alguns passos à frente.
Na prática, é o que ocorre com emendas que restringem direitos sociais. Cabe ao Legislativo e ao Executivo, de maneira responsável, decidir sobre a alocação racional de recursos escassos ("tragic choices"). De quando em vez, trocamos um carro por uma carroça.
Em um tom jocoso, é mais fácil dizer que a vedação ao retrocesso está prevista na bandeira nacional que na Constituição Brasileira.
Poucos doutrinadores fazem esta abordagem crítica. Um deles é Manoel Gonçalves Ferreira Filho.

"Um é o princípio de 'proibição do retrocesso' (Barroso e Barcellos, 2006:76). Vedaria este à revogação ou à restrição de normas que concedam direitos. Trata‑se
de uma ideia ...
... cujo alcance não foi medido pelo autor, pois, com base nela não se admitiriam novas restrições ao direito de propriedade. Ou este não é direito, e fundamental, nos termos do art. 5º, caput, da Constituição? ...
... Este princípio bloquearia a adaptação do direito a novos tempos e a novas exigências. Trata‑se aqui não de um princípio interpretativo, mas um princípio ideológico ou político. Que é na ordem das coisas o “avanço” ou o “retrocesso”? ...
O que era ontem 'avanço', hoje é 'retrocesso', o que é hoje 'avanço', poderá ser amanhã 'retrocesso'. É paradoxal que o pós‑positivismo que renega o iluminismo, reitere uma das ideias‑forças deste, a de progresso. ...
... De progresso constante, irreversível, para um mundo sempre melhor".

(FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira. RDA, v. 250. 2009. p. 163).

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