Um dos maiores problemas das analises sobre o bolsonarismo - especialmente aqui - é o fato de que elas pressupõe uma unidade entre seus apoiadores. O "gado" é sempre tomado como uma massa univoca, como se todo apoiador do presidente fosse um clone de algum bolsonarista notório.
Para começar é preciso discutir o que significa apoiar o presidente. Afinal, entre ir para as ruas gritar mito enquanto ele passa em carreata é radicalmente distinto de responder uma pesquisa por telefone dizendo que avalia positivamente a sua gestão.
É preciso compreender aqueles que de algum modo avaliam a sua gestão como razoável ou positiva. Até para entender como convencê-los do contrário. Exemplo: eu conheço pessoas de uma cidade do interior do Pará que avaliam positivamente a gestão bolsonarista por conta de uma estrada
A cidade, segundo os próprios, sempre fora esquecida pelo poder público. O que mudou nos últimos anos foi o fato de que Bolsonaro (por meio de Ministro da infraestrutura, um dos mais populares), "resolveu" o problema da BR que cortava a cidade, tapando os buracos, etc...
Ou seja, da perspectiva dessas pessoas, que sempre se sentiram abandonadas pelo poder público - e com razão -, que não colheram os lucros da política desenvolvimentista dos governos anteriores, o que muda é justamente um aspecto da vida cotidiana.
Tratam-se de pessoas que até hoje tem um acesso precário as redes de internet (na verdade, o 3g funcional acabou de chegar na região), compartilhavam o material político por meio de aplicativos de bluetooth (esse público passa batido nas nossas análises).
Esse pessoal, que conheço do tempo que vivi pelo Pará, é um caso mais extremo. Contudo, você percebe a estrutura sendo repetida em diversas escalas até chegar em círculos próximos.
Antes da quarentena chegar eu estava pesquisando, conversando com eleitores do sujeito, especialmente evangélicos. E duas coisas saltaram aos meus olhos: o primeiro era o fato de que o nome Bolsonaro chegou a estes círculos abalizado por alguma figura confiável.
Era sempre um "primo que estudou", um "tio", um "pastor", etc... Existia um padrão claro: os arautos do bolsonarismo (os que trouxeram a palavra) eram, em sua maioria, homens em uma posição considerada hierarquicamente superior. Seja por capital simbólico ou financeiro.
Ou seja, a confiança no nome, no então deputado, era uma expressão direta da relação de confiança no próprio arauto. Por isso insisto tanto que para estudar a política atual é preciso compreender as noções de parentesco no Brasil.
E aqui vem um segundo ponto importante: o Bolsonaro destes sujeitos era outro que o meu (ou nosso). O Bolsonaro que chegava até eles era um sujeito comprometido com certos valores, que lutaria até o fim pela eles. Detalhe: boa parte dessas pessoas votou no PT anteriormente.
Para alguns se tratava de um sujeito comprometido com a luta anticorrupção - e a corrupção aqui é um pouco distinta da pauta moral -, para outros um sujeito comprometido com uma certa pauta moral.
Para muitos destes os casos de corrupção envolvendo o presidente são invenções dos opositores que estão se sentindo acuados. Tudo, mas absolutamente tudo que recebem sobre o assunto é filtrado dessa forma. Da timeline do facebook ao whatsapp.
Ou seja, essa base de apoio tem dois pilares centrais, (1) alguns sujeitos específicos e (2) um ecossistema informacional construído e mantido com o único intuito de manter uma rede de apoio ao presidente.
E aqui chegamos no terceiro tipo: esses "sujeitos específicos" que aparecem como "influenciadores" nestas redes são aqueles que temos contato por aqui, o "gado". E a própria existência desses sujeitos, seu comportamento nas redes, não pode ser tomada como algo natural.
Digo isso pois lá atrás, em 2014, quando passei a monitorar grupos de extrema-direita no whatsapp, intervencionistas e austro-libertários, vi o quanto eles investiam na formação e consolidação de "micro-influenciadores".
Com direito a regras sobre como se portar no grupo da família, sobre como disseminar informações nos grupos de bairro. Junto disso caminhavam a contratação de sites que organizavam as ações de contas (nem todas fake) nas redes sociais.
Enfim, o meu ponto é: o bolsonarismo, o apoio ao presidente, enquanto fenômeno social, é algo muito mais profundo (e por isso perigosa) do que simplesmente "um bando de doente" - para repetir uma expressão que vi passando por aqui.
Digo isso pois é preciso olhar para essa estrutura que foi montada ao redor da figura do sujeito para identificar (1) quem são os seus verdadeiros articuladores, e (2) como podemos montar uma estratégia eficaz de resistência.
E esse ponto é crucial, pois uma vez que essa rede se canse do Bolsonaro, ela vai simplesmente partir para o próximo nome, assim por diante.

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28 Feb
E antes que venham falar alguma coisa, o sujeito está em um uma instituição onde transita livremente pelo pátio, não sofre nenhum tipo de maus-tratos, basicamente um fim de semana entre os amigos. Não me venham comparar a situação desse sujeito com a de 99,9% da massa carcerária.
Com o adendo de que ele goza de ampla possibilidade de defesa, advogados, apoio aberto de políticos, etc...
Read 5 tweets
28 Feb
Na linguagem coach trader de Internet muambeiro virou "redirecionador de compras".
Nada contra ser muambeiro - inclusive quem for me add pois comprar barato é comigo mesmo -, o que complica é o nome pomposo.
"Oi, meu nome é fulano, moro no Texas e sou especialista em mercado internacional, tem cinco anos que trabalho com redirecionamento de compras"

Parece que ele tá trabalhando com petróleo ou algo do tipo, né? Mas tá vendendo mochilas importadas.
Read 4 tweets
27 Feb
A pandemia escancara o óbvio: a grande religião sacrificial do mundo é o capitalismo, que dia após dia obriga o trabalhador a se sacrificar em prol do Deus-Mercado. Políticos, empresários e pastores neopentecostais são os arautos dessa religião.
O assustador é que sejamos incapazes de renegar esse deus e retribuir a violência que seus arautos exigem. Pior, nós mesmos nos tornamos reprodutores dessa violência. E de fato essa é a grande técnica dessa religião: os cordeiros se identificam com os arautos.
O que diferencia o político de um trabalhador que apoia esse sistema é apenas a capacidade de colher os espólios do sacrifício diário (de si e de outrem), da destruição contínua dos corpos e subjetividades em prol do lucro. E isso é dado desde antes de Marx.
Read 8 tweets
27 Feb
Bicho, eu tô absolutamente enojado desse comentário político barato que insiste na repisada tese de que os militares estão constrangidos com esse ou aquele aspecto do governo Bolsonaro. Não estão. Estão é mamando nas tetas do estado (que nesse caso despeja leite condensado).
O livro do Vilas Boas fala de uma preocupação da alta cúpula com um espírito revoltoso da população - que lhes foi reportado por empresários. Conversa para boi dormir. Agiram por ressentimento, pois ficaram ofendidinhos com a Comissão Nacional da Verdade.
Os militares jamais tiveram qualquer compromisso com o país. Se tivessem jamais teriam saído da caserna. Pois qualquer investigação minimamente séria sobre a ditadura revela que eles só destruíram o país.
Read 7 tweets
27 Feb
Jair Bolsonaro não é presidente, é uma criança que, tudo indica, jamais saiu de sua fase anal. Incapaz de ser contrariado, de assumir qualquer responsabilidade, moleque mesmo. Ele e seus filhos, igualmente moleques, igualmente irresponsáveis.

g1.globo.com/ce/ceara/notic…
250 mil mortos e ele é incapaz de falar, propor algo que não seja bravatas e, pior, promover o caos, a morte. Se deliciar com ela. Se existe um sujeito que odeia o próprio país, o próprio povo, esse sujeito é o Bolsonaro.
Não é a toa que ele e seus filhos não perdiam uma oportunidade de afagar as bolas do ex-presidente dos Estados Unidos. Batendo uma (continência) para a bandeira dos outros e tudo mais.
Read 5 tweets
26 Feb
Ser militar no Brasil é a melhor coisa do mundo: não importa quantas vezes destruam o país, quantas morram por conta de suas ações, ainda serão vendidos (pela direita e esquerda) como uma instituição integra, ética...
Bolsonaro não é um militar atípico: é um militar padrão, exemplar. Não fosse não teria sido escolhido pelos militares para governar o país.
Sim, Mourão não caiu ali de paraquedas. Se os altos círculos das FFAA não compactuassem com o projeto bolsonarista não o teriam colocado ali. Pior, não teriam aceitado que tantos oficiais integrasse esse governo.
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