Como parte da preparação do meu curso novo, tenho buscado conhecer melhor certos realizadores de vários lugares do mundo - e há algum tempo comecei a ler sobre o documentarista indiano Anand Patwardhan, uma figura de imensa coragem que vem denunciando abusos há quase 50 anos.
Os filmes de Anand Patwardhan (seu primeiro é de 1974) são pouco vistos até mesmo na Índia, já que de uma maneira ou de outra praticamente todos os governantes ao longo deste período buscaram atrapalhar suas exibições pelo país - e encontrar os filmes é tarefa complicadíssima.
Então eu vinha lendo sobre Patwardhan sem muita esperança de conseguir VER os filmes - até que, por uma imensa coincidência, quando eu já havia desistido de achá-los (mesmo por torrent), eles caíram no meu colo.
Para quem quiser saber um pouco mais sobre Anand Patwardhan, eu recomendo muito este artigo excelente do @nytimes: nytimes.com/2020/12/01/mag…
Mas quero destacar um trecho do artigo porque creio que as similaridades das ações da extrema-direita indiana e da brasileira são muito curiosas - tanto em retórica quanto em prática. Ao falar sobre a opressão dos muçulmanos pela maioria hindu, o artigo descreve:
"Os muçulmanos são encurralados em locais públicos para provar seu patriotismo. Homens são espancados em função de postagens no Facebook e culpados por tudo, desde a "superpopulação" do país até por "roubarem" mulheres hindus por meio do casamento. (...) +
Muitas cidades e pontos de referência que refletem a herança muçulmana da Índia foram renomeados. Alguns livros escolares agora glorificam os mitos hindus e pintam os governantes muçulmanos do subcontinente sob uma luz bárbara.(...)"
(ATENÇÃO PARA A PARTE SEGUINTE!)
"Rumores incendiários no WhatsApp enganam a esmagadora maioria hindu do país, levando-a a se ver como se estivessem sob cerco. Processos por crimes de ódio contra muçulmanos se arrastam por anos. Artistas e acadêmicos dissidentes são orientados a "ir para o Paquistão".
É isso. A extrema-direita age como se fosse dona do país; quem não gostar, que "vá para Cuba" (ou pro Paquistão). Como suas políticas são destrutivas, eles precisam inspirar o seus seguidores através do ódio por qualquer um que vejam como obstáculo.
À medida que for vendo os filmes de Anand Patwardhan, atualizarei este fio.
(A propósito: enquanto o curso novo não fica pronto - e ainda não consigo ver quando ficará -, abrirei matrícula na próxima semana para um dos já existentes.)
Waves of Revolution (Kranti Ki Tarangein, Índia, 1974)
O primeiro filme de Anand Patwardhan surgiu por acaso: o estado de Bihar estava sendo palco de manifestações de estudantes e agricultores contra a corrupção do governo da região e Patwardhan foi chamado para registrá-las.
Com duas câmeras (uma Super 8 e outra de 16mm), Patwardhan registrou os protestos e, principalmente, os discursos de Jayaprakash Narayan (chamado de JP), um socialista e discípulo de Gandhi que pregava uma "revolução total" (mas pacífica).
Os protestos logo passaram a incluir também a demanda por uma reforma agrária e o fim do sistema de castas, mas quando Indira Gandhi instituiu a Emergência, em 75, a repressão se tornou pesadíssima - algo que o filme inclui em um breve epílogo.
É um doc repleto de urgência e que captura a esperança revolucionária de um povo miserável que finalmente experimentaria um gosto de vitória em 77, com a derrota do partido de Indira Gandhi, mas que, de modo geral, continuaria a ser massacrado economicamente pelas elites.
Um detalhe interessante: para completar o longa, Patwardhan projetou as imagens feitas em Super8 em uma tela e, usando uma câmera de 16mm, gravou os registros para incluí-los na versão final.
É claramente um filme feito sem recursos - e ainda mais admirável por isso.
Prisoners of Conscience (Índia, 1978)
Enquanto o primeiro filme de Anand Patwardhan abordava as revoltas populares de 1974 e 1975, este segundo trabalho se preocupa com a natureza ditatorial do período de Emergência proclamado por Indira Gandhi de 75 a 77 e os abusos cometidos.
Durante a Emergência, mais de cem mil pessoas se tornaram prisioneiras políticas, sendo mantidas por anos em celas lotadas sem serem formalmente acusadas ou submetidas a julgamento. Além disso, torturas e execuções sumárias eram prática recorrente.
Com a derrota em 1977 do Partido do Congresso, que dava sustentação a Indira Gandhi, muitos destes prisioneiros políticos foram libertados - e é nos depoimentos destas pessoas que Patwardhan centraliza a narrativa, colhendo relatos de persistência e das barbaridades sofridas.
Aliás, já é possível notar alguns traços autorais na abordagem estética de Patwardhan - claramente situada no espectro do Terceiro Cinema (particularmente o Cinema Imperfeito definido por Julio Garcia Espinosa em Cuba) -, que transforma as limitações técnicas em virtudes.
Além disso, o uso de músicas populares e da narração seca, em tom quase melancólico (mas que não emprega a poética que encontramos, por exemplo, nas de Herzog), são recursos poderosos na construção dos filmes.
Que, além de tudo, demonstram imensa coragem por parte do diretor.
A Time to Rise (Canadá, 1981)
Em seu terceiro filme, Anand Patwardhan saiu da Índia e foi ao Canadá dirigir um documentário sobra a fundação do Sindicato Canadense dos Agricultores - o que não é absurdo, já que 80% dos trabalhadores eram imigrantes indianos.
Explorados pelos fazendeiros canadenses e também por outros imigrantes que tinham acordo para fornecer trabalhadores baratos em troca de parte de seus salários, os agricultores se organizaram com a ajuda do célebre sindicalista César Chavez, que havia feito o mesmo na Califórnia.
Sempre empregando sua narração característica (além de músicas cantadas por populares), Patwardhan revela as condições miseráveis dos agricultores, a luta do sindicato para se estabelecer, o esforço para atrair novos membros, as negociações e os protestos contra os fazendeiros.
Trata-se de um documentário militante, que enxerga nos trabalhadores uma dignidade que o sistema se recusa a reconhecer, e que no processo expõe como a luta por direitos é árdua, traz ameaças por sacudir os poderosos, mas é justa e, acima de tudo, essencial.
Bombay, Nossa Cidade (Hamara Shahar, Índia, 1985)
O quarto filme de Anand Patwardhan se concentra nas favelas de Bombay (o nome da cidade só mudou para Mumbai em 1995) e na luta dos moradores destas comunidades contra a prefeitura, que insiste em demolir os barracos.
Para traçar um amplo painel do problema, Patwardhan vai até as comunidades - muitas delas nascidas de ocupações temporárias enquanto os migrantes trabalhavam na construção de prédios de alto luxo -, entrevista os moradores e retrata as terríveis condições que enfrentam.
Desenvolvendo a ironia através da montagem, Patwardhan refina a técnica presente em seus filmes anteriores de contrapor sons e imagens pra expor a hipocrisia da elite - como ao entrevistar um alto funcionário da prefeitura que quer despejar pobres, mas mora em residência oficial.
Além disso, o diretor mais uma vez utiliza canções de lamento e protesto compostas por artistas ligados aos movimentos e enfoca também encenações que buscam ridicularizar a arrogância e a soberba dos poderosos.
E Patwardhan não se exclui das críticas, incluindo no doc uma fala dolorosa de uma sem-teto sobre como figuras como ele vão até ali para registrar a miséria em fotos ou filmes, mas em nada contribuem para aliviar os problemas imediatos dos retratados.
Filme doloroso e tragicamente atual mais de 35 anos depois, Bombay, Nossa Cidade poderia substituir o nome do lugar pelo de qualquer outra metrópole no mundo e ainda assim continuaria a representar as desigualdades crescentes provocadas por um capitalismo sem controle.
In Memory of Friends (Un Mitron Ki Yaad Pyaari, Índia, 1990)
Em seu quinto filme, Anand Patwardhan se concentra nos conflitos entre hindus fundamentalistas e sikhs no país - especialmente na província de Punjab, onde estes últimos (ao contrário do resto do país) são maioria.
Para dar foco ao doc, Patwardhan se concentra na instrumentalização da história de Bhagat Singh, revolucionário socialista que lutou contra a dominação britânica e foi executado em 1931, aos 23 anos de idade.
Enquanto a extrema-direita tentou deturpar as intenções de Singh para justificar uma política ultranacionalista, os sikhs passaram a usá-lo como figura central de sua luta separatista (o moimento Khalistan) para tornar a província de Punjab um Estado soberano.
No entanto, Baghat Singh não era sikh (ou hindu), mas um ateu convicto - e nem mesmo o fato de ter deixado um livro intitulado "Por que Sou Ateu" parece convencer o movimento de estar alterando a história do mártir para seus próprios fins.
Entrevistando pessoas de todos os lados do conflito (como é sua característica), Patwardhan inclui passagens de textos deixados por Singh como contraponto das imagens que captura (outra marca de sua filmografia), expondo assim as contradições de pessoas interessadas em violência.
Mais uma vez demonstrando fascínio pelas apresentações musicais/teatrais empregadas para mover e politizar a população, Patwardhan explora também as ações do Partido do Congresso para insuflar o conflito entre hindus e sikhs depois de sua derrota eleitoral em 77.
Substituindo o otimismo (mesmo que moderado) de Waves of Revolution e A Time to Rise por um sentimento de exaustão diante de ciclos intermináveis de violência (que culminam no assassinato de um dos entrevistados), Patwardhan insiste aqui na ideia de que educar é fazer revolução.
In the Name of God (Ram Ke Naam, Índia, 1992)
Depois de expor a instrumentalização da religião em seu filme anterior, Anand Patwardhan volta ao tema neste filme que acabou documentando um fenômeno que se tornou dominante na Índia de hoje: a dominação dos hindus fundamentalistas.
Observando como os britânicos usaram a religião para fomentar a discórdia entre hindus e muçulmanos no início do século passado a fim de sabotar o movimento de independência, o doc ilustra este conflito através da disputa envolvendo a mesquita Babri Masjid.
Embora a mesquita existisse desde o século 16, os britânicos começaram a espalhar a "informação" de que ela havia sido construída sobre um templo hindu - que, por sua vez, marcava o local de nascimento do deus Rama. Com isso, os hindus passaram a defender a demolição da mesquita.
Já em 1977, depois que o Partido do Congresso (de Indira Gandhi) foi derrotado e houve o fim da Emergência (ver meus tweets anteriores neste fio), seus líderes passaram a semear ainda mais os conflitos entre hindus e muçulmanos - agora com fins eleitoreiros.
Enxergando ali uma oportunidade política, a organização de extrema-direita VHP passou a promover carretas pelo país a fim de radicalizar os hindus, que compunham 83% da população, mas que, na maior parte, conviviam pacificamente com os muçulmanos.
Patwardhan, por sinal, inclui entrevistas com representantes de todos os lados, não resistindo, porém, a expor a incoerência dos hindus fundamentalistas - e os líderes do VHP nem mesmo visitavam ou faziam doações ao templo dedicado a Rama construído dentro da mesquita há décadas.
(A história tem uma complicação que não mencionei: em 1949, alguns hindus invadiram a mesquita Babri Masjid durante a noite e colocaram vários ícones de sua religião; desde então, a mesquita foi fechada - com exceção deste pequeno templo improvisado.)
Aliás, Patwardhan entrevista longamente o sacerdote (ou "Pujari") Laldas, responsávelo pelo templo hindu no interior da mesquita e que é contra sua demolição, defendendo a convivência entre hindus e muçulmanos. (Laldas foi assassinado um ano após aparecer no filme.)
Capturando a mentalidade de turba que toma conta dos seguidores do VHP, o filme registra os primeiros ataques à mesquita, que acabaria sendo destruída em dezembro de 1992 - o que deu início a conflitos por todo o país, resultando em milhares de mortos.
Mas Patwardhan jamais permite que o doc se torne sensacionalista ou mesmo alarmista; o perigo do crescimento do fundamentalismo está presente em cada frame, mas é observado de modo analítico, objetivo.
O que não diminui o pânico quando percebemos similaridades com o Brasil atual.
Pai, Filho e Guerra Santa (Pitra, Putra Aur Dharamyuddha, Índia, 1994)
Este doc continua a narrativa, de certo modo, a partir de onde o anterior parou: a destruição da mesquita Babri Masjit por hindus fundamentalistas. Aqui, Anand Patwardhan aborda a violência que veio a seguir.
Dividido em duas partes (Julgamento por Fogo e Farmácia do Herói), o filme adota uma abordagem inesperada (mas relevante) ao investigar o papel que a masculinidade tóxica e a própria estrutura patriarcal desempenham nos intermináveis ciclos de violência.
Patwardhan aborda, por exemplo, o terrível ritual hindu Sati, no qual uma viúva deveria se atirar na pira funerária do marido morto - e que, apesar de proibido, ainda tem seus defensores entre os fundamentalistas, ocorrendo pontualmente em alguns vilarejos.
Aliás, Patwardhan ilustra o fanatismo religioso ao conversar com uma mulher que defende o Sati e que exibe uma ilustração que defende veementemente se tratar de uma FOTO do momento em que o deus Rama projetou um raio de fogo sobre uma mulher recentemente submetida ao ritual.
O diretor discute também como a masculinidade e a virilidade se manifestam de modo ainda mais repugnante no estupro de mulheres muçulmanas pelos hindus fundamentalistas e como toda a violência é incentivada por políticos interessados nos benefícios eleitorais do conflito.
Infelizmente, Patwardhan acaba investindo tempo demais neste tema, o que custa ao filme a possibilidade de investigar os demais componentes religiosos do crescimento do fundamentalismo hindu e de suas consequências pavorosas sobre a sociedade indiana.
Narmada Diary (Índia, 1995)
Dirigido por Anand Patwardhan em parceria com o ativista Simantini Dhuru, este documentário acompanha a luta do Narmada Bachao Andolan (Movimento Salve Narmada) contra a construção de represas ao longo do rio Narmada.
Rodado ao longo de quatro anos, o doc revela não só o terrível impacto ambiental que o projeto provoca, mas também humano, já que forçará a remoção de mais de 200 mil habitantes (pobres, claro) da região - a maioria, nativos (chamados de adivasis, ou "habitantes originais").
Determinado a impedir a conclusão da obra, o NBA organiza protestos pacíficos (geralmente resultando em violência policial), greves de fome e encontros com políticos da administração regional que normalmente demonstram completa indiferença diante do povo.
No processo, conhecemos também a notável líder ativista Medha Patkar, que luta contra o projeto e busca garantir que aqueles obrigados a sair da região recebam compensações apropriadas - e suas ações tiveram algum efeito, já que a represa só foi totalmente ativada em 2017.
We Are Not Your Monkeys (Índia, 1997)
Com apenas 5 minutos de duração, este é um trabalho diferente na carreira de Anand Patwardhan: um vídeo musical que reimagina o Ramayana para discutir a história recente da Índia, denunciando, entre outras coisas, a misoginia do hinduísmo.
Além disso, critica a fomentação dos conflitos com os muçulmanos, que visa tirar o foco das desigualdades sociais, e ataca o sistema de castas, implementado para (claro) sufocar os miseráveis - em especial os chamados "intocáveis" (ou dalits), os mais oprimidos de todos.
É um trabalho menor dentro da filmografia de Patwardhan, obviamente, mas que segue sua determinação em apontar as injustiças originadas da desigualdade econômica e do fundamentalismo religioso.
Occupation: Mill Worker (Índia, 1997)
Segundo curta que Anand Patwardhan dirigiu em 1997, este documentário tem como protagonistas os trabalhadores têxteis de Mumbai que e a ocupação de uma fábrica que havia sido fechada e deixado centenas de desempregados.
Com sua habitual simpatia pelas causas populares (especialmente de minorias e de grupos economicamente oprimidos), Patwardhan acompanha discursos, atividades comunais (como sessões de cinema promovidas no pátio da fábrica) e, claro, as ações do Estado pra sufocar o movimento.
De modo geral, no entanto, é um filme otimista que demonstra o poder originado da ação conjunta e da mobilização das classes trabalhadoras, já que os sindicatos de outras categorias se unem aos operários da indústria têxtil. Uma lição atemporal, eu diria.
War and Peace (Jang Aur Aman, Índia, 2002)
Ao longo das décadas, a busca dos EUA por uma supremacia bélica que é fruto tanto de arrogância quanto de um ciclo de intimidação recíproca com outros países acabou por criar uma cultura de guerra que se espalhou pelo mundo.
Assim, países como a Índia passaram a enxergar, no desenvolvimento de armas nucleares, uma forma de estabelecer sua importância no xadrez global - algo que, por sua vez, inspira seus inimigos históricos (como o vizinho Paquistão) a adotarem uma estratégia similar.
É esta lógica absurda que Anand Patwardhan investiga neste documentário dividido em duas partes e seis capítulos, partindo do assassinato de Gandhi e seguindo o crescimento de uma facção nacionalista do hinduísmo que, inicialmente banida graças ao assassinato, acaba retornando.
Patwardhan expõe também os altos custos humanitários envolvidos nos testes nucleares, que acabam por provocar câncer e deformação de fetos em função da radiação elevada nas vilas próximas aos locais usados pelos militares -que, além disso, consomem boa parte do orçamento do país.
Seguindo também as manifestações de pequenos grupos pacifistas que são recebidos com hostilidade pelos representantes do BJP, um dos dois principais partidos da Índia e que representa a extrema-direita nacionalista, Patwardhan visita também o Paquistão para conhecer o "inimigo".
E o que ele aponta nesta visita é como os "inimigos" são, claro, um povo similar ao indiano em muitos aspectos (algo esperado, considerando a origem do país) e que de modo geral enxerga a atmosfera hostil, belicista, como um imenso desperdício de recursos e energia. Filmaço.
Jai Bhim Comrade (Índia,2011)
Se o sistema de castas indiano já seria algo condenável por natureza, o tratamento reservado aos Dalits é um crime contra a humanidade. Pra se ter uma ideia, eles são chamados de "intocáveis" por serem considerados "imundos" pelas castas superiores.
O chocante não é saber que eles seguem sendo vistos como inferiores por boa parte da população, mas constatar a ironia de que a Constituição do país foi escrita... por um Dalit. Que, não por acaso, hoje é visto como um verdadeiro Santo por estes.
Babasaheb Ambedkar foi um Dalit que no início do século passado conseguiu uma bolsa de estudos fora do país, se formou em Direito e, ao retornar à Índia, fez carreira política e lutou pelo fim do sistema de castas e atacou o machismo do hinduísmo.
(Suas críticas ao hinduísmo o colocaram em conflito constante com Gandhi, por sinal, mas a relação entre os dois, embora fascinante, é complicada demais para discutir aqui. Digo apenas que, ao contrário do senso comum, já que Gandhi virou lenda, Ambedkar estava certo.)
O filme de Anand Patwardhan, com quase 3 horas de duração, expõe a situação dos Dalits na sociedade indiana, o uso político da memória de Ambedkar feito pelos hinduístas nacionalistas (os mesmos que desprezam os "intocáveis") e a violência estatal contra os membros desta casta.
Patwardhan dá peso principalmente ao suicídio do poeta dalit Vilas Ghogre, que apareceu no final de "Bombay, Nossa Cidade" e cometeu suicídio como protesto pelo massacre de 10 dalits pela polícia em 1997, quando protestavam pelo vandalismo a uma estátua de Ambedkar.
A empatia de Patwardhan, um hindu secular, diante da opressão aos dalits (muitos convertidos ao budismo depois que Ambedkar promoveu uma conversão em massa em 1956), é algo que caracteriza a humanidade presente em sua filmografia e que aqui traça um painel revelador e doloroso.
Fishing: In the Sea of Greed (Índia, 1998)
Este é um filme de Patwardhan tão difícil de encontrar que nem aparece listado na sua filmografia no @IMDb. Trata-se de um doc que fez em 98 sobre a situação das comunidades de pescadores no país com o avanço da pesca industrializada.
Em primeiro lugar, há o óbvio: que os grandes navios pesqueiros (muitos de corporações multinacionais) capturam, em um dia, o equivalente ao que mil pescadores levariam um ano para conseguir - o que torna cada vez mais difícil para que estes consigam encontrar algo no mar.
Além disso, o crescimento da aquacultura (especialmente de camarão) vem destruindo as terras nas linhas costeiras não só da Índia, mas de vários países - e não é à toa que os EUA, embora tenham imensa linha costeira, preferem IMPORTAR camarão. Que os OUTROS se destruam, certo?
Como de hábito, Patwardhan foca na luta dos pescadores para se organizarem, fazendo bloqueios no mar para impedir que os grandes navios se aproximem (a imagem de um barquinho diante de um colosso é icônica), promovendo protestos e ganhando o apoio de pescadores do mundo inteiro.
O diretor segue também com seu estilo de criar mensagens impactantes através de simples cortes (um registro formalista), como ao trazer o retrato de uma mulher morta ao protestar contra uma fazenda de camarão e segui-lo com a imagem de um comercial.
Ressaltando também a solidariedade entre pescadores indianos e paquistaneses, Patwardhan sugere que mais importante do que linhas fronteiriças arbitrárias e políticas internacionais belicistas movidas a interesses financeiros é a consciência de classe.
Uma mensagem fundamental.
Reason (Vivek, Índia, 2018)
O filme mais recente de Anand Patwardhan é uma porrada em suas cerca de quatro horas de duração dedicadas a denunciar como os hinduístas fundamentalistas nacionalistas (os Hindutvas) estão transformando o país em um Estado teocrático autoritarista.
Dividido em 8 capítulos, o doc se estrutura em torno dos assassinatos de figuras ligadas ao racionalismo, que se destacavam nas críticas ao fundamentalismo hindu: o médico Narendra Dabholkar, o intelectual M.M. Kalburgi, a jornalista Gauri Lankesh, e o advogado Govind Pansare.
Empoderados com as vitórias eleitorais do partido de extrema-direita BJP desde 2014 (e, em menos escala, do Shiv Sena), os Hindutvas também se beneficiam das ações de grupos paramilitares extremistas como o RSS, o ABVP (integrado por estudantes) e o cultista Sanatan Sanstha.
Ao longo das quatro horas, Patwardhan demonstra a impossibilidade crescente de diálogo com indivíduos que são manipulados pela mídia e pelos líderes políticos para enxergarem todos como inimigos: paquistaneses, muçulmanos e até mesmo a minoria oprimida Dalit.
Os Dalits, por sinal, enfurecem as castas "superiores" (especialmente os Brahmins, compostos por líderes religiosos) em função das políticas afirmativas implementadas como forma de tentar compensar milhares de anos (sim, milhares) de opressão.
Isto se manifesta, por exemplo, nas universidades públicas que, sob o governo do BJP, são comandadas por figuras nomeadas por pura ideologia e que basicamente incentivam o ostracismo de estudantes Dalits - resultando no suicídio de um deles, que se torna um símbolo dos abusos.
Cada vez mais violentos, os Hindutvas passam inclusive a incentivar agressões e linchamentos de muçulmanos acusados de comer carne de vaca (consideradas sagradas pelos hindus) - o que, num dos casos apresentados no doc, resulta na morte de um homem que comia carne de carneiro.
Num sintoma da desintegração da democracia da Índia e da tensão crescente no país, Reason traz Patwardhan diante das câmeras em dois momentos (algo raro em sua obra), quando é ameaçado por um advogado durante uma coletiva (que nem sabia que ele estava ali) e...
... mais tarde, num protesto do ABVP, quando confronta os estudantes direitistas que se negam a reconhecer um fato histórico: que o assassino de Gandhi, Nathuram Godse, era membro do RSS, da qual o ABVP se originou - e é fácil nos identificarmos com a frustração do diretor.
Ainda proibido de ser exibido na Índia, Reason é um filme angustiante que comprova como a destruição de uma democracia se dá de modo gradual, a partir de pequenas escaladas retóricas e de atos autoritários cada vez mais ostensivos.
Uma lição que deveríamos aprender de vez.
E assim concluo minha visita à filmografia completa do indiano Anand Patwardhan, um documentarista cuja formação combina o hinduísmo secularista, as influências de Gandhi e Bhimrao Ambedkar, o marxismo e, principalmente, um humanismo tocante e inabalável.
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Como já compartilhei inúmeras vezes ao longo dos anos através de tweets, posts no FB e em textos no Cinema em Cena, tenho um histórico antigo com depressão e ideação suicida. É algo que busco discutir com frequência até mesmo para demonstrar como não deve ser tratado como tabu.
O que a família Bolsonaro fez hoje (o pai na live; o filho no twitter) é uma das ações mais repugnantes de uma trajetória já repleta de atitudes desumanas, sociopáticas. A exploração de um suicídio para fins políticos é algo que expõe as almas apodrecidas de um clã de canalhas.
Encontro-me, felizmente, em um período estável da depressão; há dias melhores e outros piores, mas há um bom tempo não tenho uma crise profunda, mais perigosa. E MESMO ASSIM o que ocorreu hoje me tirou do prumo, me chacoalhou. Imagino o efeito sobre quem está mais vulnerável.
Não há nem como expressar a gravidade de Bolsonaro, este desgraçado miliciano, ler uma carta de suicídio deixada por alguém que se matou na pandemia (se for verdade; nada vindo dele é confiável). Há estudos e mais estudos confirmando como isto é um gatilho perigosíssimo.
Há protocolos adotados inclusive pela imprensa em todo mundo para noticiar suicídios porque é algo com potencial para levar a mais mortes, para derrubar aqueles que já estão à beira do precipício. Bolsonaro é uma criatura abominável; NUNCA perdoarei aqueles que o elegeram. Nunca.
E o filho dele, que é igualmente repugnante, colocou a carta no twitter e a foto da pessoa. Denunciem, denuciem, denuciem, denuciem.
Há alguns detalhes ali que me chamam muito a atenção, como a maneira como se programaram para vazar uma informação em dois momentos para gerar "duas repercussões" JÁ CONTANDO que Moro levantaria o sigilo na hora combinada.
Mas o mais chocante é a imensidão de dinheiro público e de recursos que eles desperdiçaram por darem atenção a uma fake news. Esse era o nível da equipe de ases investigativos comandados por @deltanmd: um bando de aspirantes a Sherlock Holmes que eram na verdade Projotas.
Não tem jeito mais. Não há como dialogar ou esperar bom senso de alguém cuja bússola moral aponta sempre pro extremo-leste. Estamos habituados a presumir que os oponentes políticos são humanos; quando não são, não sabemos combater.
Os contratos sociais e éticos que sempre foram subentendidos na democracia - mesmo nos momentos mais polarizados - começaram a se perder de vez depois de 2016. Estamos lidando com animais, com sociopatas. Eles não têm pudor de simular sequer o mínimo de humanidade ou decência.
Como combater gente que mente SABENDO que há registros em vídeo/áudio/TUDO comprovando isso? Que mente com a consciência de que a maioria saberá imediatamente se tratar de mentira, mas que o faz assim mesmo porque já percebeu que sua base comprará e reproduzirá a falsidade?
1) Introduction - Hong sang-soo concebe, aqui, uma de suas narrativas mais simples - beirando o simplista, na verdade. Os temas de conflito entre gerações, de apatia juvenil e de pulsão artística são tratados de modo superficial, mas jamais desinteressante. 3/5 #Berlinale2021
2) Memory Box - A estratégia estética da dupla de diretores, que remete à materialidade dos registros em caderno de uma jovem libanesa em meio à guerra civil, é inteligente e permite uma fluidez que promove várias surpresas formais interessantes. 4/5 #Berlinale2021
3) I´m Your Man - Dialogando de certa forma com "Ela", de Spike Jonze, o filme de Maria Schrader busca desenvolver reflexões sobre a autenticidade de algo intangível (sentimentos, consciência) e traz belas atuações de Eggert e Stevens, mas se acovarda em seu desfecho. 3/5
O mundo inteiro (quase literalmente) dizendo que a pandemia está fora de controle no Brasil, o sistema público em colapso, gente morrendo na fila de espera por UTI, média móvel de morto batendo recorde atrás de recorde, as poucas vacinas sendo enviadas para estados errados...
... cidades tendo que comprar containers para armazenar cadáveres, estados tendo que enviar pacientes para outros lugares, Bolsonaro atacando os governadores que tentam fazera alguma coisa, Bolsonaro espalhando fake news sobre máscaras...
... Bolsonaro vetando prazo pra Anvisa aprovar vacina, Bolsonaro deixando de investir dinheiro da saúde já destinado à pandemia (depois de gastar uma fortuna com cloroquina - sobre a qual a OMS já nem diz "não haver comprovação sobre eficácia", mas sim que FAZ MAL -...