Equipes de saúde da linha de frente não deveriam carregar o ônus de decidir quem vive e quem morre.

Por quê?

🧶Segue o fio - por @dadaltoluciana e @jkdantas ⬇️
Exigir que esses profissionais, que já estão há um ano trabalhando com medo, à exaustão, e sem abraçar seus familiares, escolham para quem dar um leito, um respirador ou um medicamento, é contra todos os critérios científicos sobre o tema.
Trata-se de uma Escolha de Sofia, termo que ganhou fama após um filme clássico protagonizado por Meryl Streep, no qual "Sofia", uma mãe polonesa, filha de pai anti-semita, é presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e é forçada por um soldado nazista a escolher +
+ um de seus dois filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, ambos seriam assassinados.

As mortes que estão acontecendo no Brasil eram previsíveis e evitáveis. Já era sabido que o sistema de saúde não daria conta de acompanhar o crescimento exponencial de pessoas+
+ contaminadas pela Covid-19. Recursos como leitos de UTI, cilindros de oxigênio e até mesmo medicamentos necessários para intubação sempre foram escassos. Sem coordenação e planejamento, chegamos a este caos que estamos vivendo.
A distribuição destes recursos - que, como dissemos, são escassos - é um dos maiores desafios da bioética clínica.
Como os recursos sempre foram limitados em determinados lugares do Brasil, já havia inúmeros estudos pré-pandemia sobre o tema.
Poderíamos ter utilizado estes materiais para nos guiarmos. Mas negamos a gravidade do avanço do coronavírus da mesma forma como sempre negamos que os recursos eram escassos nos hospitais.
E, se alguém estava em dúvida, este problema passou a ficar bem mais evidente no início da pandemia, quando vimos cenas de terror na Itália, por exemplo. Agora, assistimos a essas cenas ao vivo, sob o nosso teto.
Não existe até o momento um único protocolo nacional, feito por um órgão governamental, sobre alocação de recursos escassos.
Lá atrás, no começo da pandemia, os países desenvolvidos foram os únicos que realmente foram surpreendidos pela escassez de recursos e, em menos de três +
+ meses, os governos chamaram gestores, bioeticistas e profissionais de saúde para conversar e criar protocolos.

Nós, que já vivíamos essa situação, e que tínhamos pessoas preparadas para lidar com o tema, não fizemos nada até agora.
Pelo tempo que observamos o estrago que a Covid-19 vinha fazendo em outros países antes de chegar aqui, seria possível prevenir a tragédia que estamos vivendo hoje, com estratégias bem definidas. Mas não foi o que vimos - pelo contrário.
Agora, 12 meses depois, quando a situação é exatamente aquela para a qual todas as previsões apontavam, caiu no colo dos profissionais de saúde da linha de frente essa escolha. Mas esse dever não é deles. E nem pode ser tratado como se fosse.
Como decidir quem vive e quem morre? Quem merece este ou aquele equipamento? Quem deve ficar com os últimos cilindros de oxigênio? Essas perguntas envolvem gestão, justiça e multidisciplinaridade.
Que? Vamos lá:
Tirar recurso de um lugar e alocar em outro, ou escolher quem receberá o único recurso que existe é uma prática que deve seguir critérios objetivos, justos e transparentes. Não cabem julgamentos de valores (morais ou religiosos, por exemplo) e nem discriminação de qualquer tipo +
+ (raça, credo, gênero, classe social). Usar como item eliminatório apenas a idade do paciente, por exemplo, pode ser classificado como etarismo e é ilegal.

O foco precisa ser: aproveitar ao máximo os recursos disponíveis para salvar a maior quantidade de gente possível.
Portanto, o ideal é que uma equipe imparcial, diferente daquela que está na linha de frente, tomasse essas decisões. Jamais aquele profissional que lida diretamente com o paciente e com a família.
E mais: ainda que faltem recursos, nenhuma pessoa deve ficar desamparada ou sem cuidados. Mesmo que falte leito de UTI, o paciente deve ser atendido por profissionais de saúde e ter seus sintomas controlados com as estratégias que estiverem à disposição naquele momento.
Uma equipe que conheça os fundamentos de cuidados paliativos deveria estar presente para controle de dores e desconfortos por falta de ar, por exemplo.

No caso da Covid-19, equipes de cuidados paliativos deveriam estar a postos desde o momento do diagnóstico, +
+ para todos os pacientes, independentemente da gravidade. A Covid-19 é uma doença ameaçadora da vida, então, seguindo os critérios da OMS, há indicação de abordagem paliativa - que é complementar e multidisciplinar.
Acontece que, no Brasil inteiro, há apenas 177 serviços de cuidados paliativos e um enorme desconhecimento sobre o que seja essa abordagem. É comum que os cuidados paliativos sejam confundidos com fim de vida ou abandono.
Desconhecer cuidados paliativos é perigoso, pois trata-se do manejo correto das diferentes dores - física, social, psicológica, entre outras, tanto do paciente quanto dos familiares.
Então, além de recursos materiais escassos, temos escassez de políticas públicas e de conhecimento sobre o tema. É preciso, com urgência, fazer um protocolo nacional para alocação de recursos escassos e, como já perdemos muito tempo, nossa sugestão é que o governo adote a +
+ recomendação publicada em 01.05.2020 pelas Assoc. de Medicina Intensiva Brasileira, Assoc. Brasileira de Medicina de Emergência, Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e Academia Nacional de Cuidados Paliativos, que leva em conta todas as nuances expostas acima.
Caso você queira o link: amib.org.br/fileadmin/user…
Da forma como estamos hoje, os critérios para decidir a alocação de recursos escassos diferem não apenas entre municípios e estados, mas mesmo entre hospitais vizinhos de bairro. Sem uma padronização há, fatalmente, desigualdade de critérios e, portanto, flagrante injustiça.
Precisamos entender que os profissionais da linha de frente são tão vítimas da omissão do Poder Público Federal quanto os pacientes.

Precisamos entender que nenhuma decisão de alocação de recursos escassos será 100% boa - são sempre escolhas trágicas -, mas a uniformização +
+ de parâmetros e a proteção dos profissionais da linha de frente são o mínimo de justiça que precisamos ter hoje.

Precisamos assumir que a morte de qualquer paciente com Covid-19 por escassez de recursos a essa altura da pandemia chama-se MISTANÁSIA, que é +
+ a morte social, cruel, desumana. E a mistanásia está intimamente ligada à necropolítica.

Há quase um ano, em abril de 2020, a @jkdantas entrevistou a @dadaltoluciana e a @papo_paliativo no @podcastfinitude sobre essas Escolhas de Sofia, onde há mais detalhes sobre +
a alocação de recursos escassos:
open.spotify.com/episode/4J3Pib…

............

Luciana Dadalto é advogada, bioeticista, professora e pesquisadora.
Juliana Dantas é jornalista e apresentadora do podcast Finitude.

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Juliana Kunc Dantas

Juliana Kunc Dantas Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @jkdantas

19 Mar
(1/11)

Você sabe o que é MISTANÁSIA?

A prática já acontecia no Brasil antes da pandemia e, agora, está se intensificando.

🧶Segue o fio - por @dadaltoluciana e @jkdantas. ⬇️
(2/11)

Trata-se de uma morte cruel, desumana, indigna, por omissão de socorro, falta de atendimento ou falta de medicamento/leito/exame. Ou seja: morre-se numa fila de hospital, à espera de um medicamento, leito de UTI ou de um cilindro de oxigênio, por exemplo.
(3/11)

Na capital paulista, por exemplo, a Prefeitura confirmou, nesta semana, que já houve a primeira morte de uma vítima da doença sem atendimento adequado na rede pública.
Read 14 tweets
11 Jan
Com todo o respeito pelo Ruy Castro e com todo o desprezo por Trump e Bolsonaro, me sinto no dever de escrever sobre isso.
Não sou psicóloga, sou jornalista. Já fiz reportagens sobre suicídio em grandes redações e atualmente cubro especificamente temas relacionados à morte. +
Antes de a gente seguir neste fio, vale lembrar que se você está passando por alguma situação delicada ou conhece quem está, o @CVVoficial é um atendimento sigiloso, gratuito e 24h. Pelo telefone 188 ou pelos canais de comunicação na internet. +
Também há o mapasaudemental.com.br, desenvolvido pelo Instituto Vita Alere - uma referência em prevenção e posvenção ao suicídio. Neste site há contatos de psicólogos e psiquiatras gratuitos em todo o Brasil, online ou presencial.

Dito isto, sigamos:
Read 16 tweets
5 Jul 20
Nos últimos dias tive uma das experiências mais incríveis da minha vida.

Segue o 🧶
O Hospital Premier, o 1º do Brasil a se dedicar integralmente aos cuidados paliativos, esteve 100 dias em isolamento.
Metade da equipe escolheu ficar e a outra metade - por razões diversas - esteve do lado de fora, recebendo o salário integralmente.
A princípio, a quarentena+
duraria 45 dias. Mas, como sabemos, os números do coronavírus não param de subir. Para proteger os pacientes, em estado de saúde frágil, o único jeito era manter a medida - tão drástica quanto necessária. Se a Covid passasse por algum dos portões, poderia acontecer uma tragédia+
Read 8 tweets
18 Jun 20
Como lidar com alguém em luto - A THREAD

Nos próximos dias, infelizmente, chegaremos aos 50 mil mortos por Covid-19 no Brasil. A estimativa é de que cada uma dessas perdas deixe 10 pessoas em luto. Numa conta rápida: meio milhão de brasileiros em sofrimento.+
Isso sem falar sobre a subnotificação e sobre os óbitos por outros motivos, que continuam acontecendo.

Tem sido difícil encontrar quem não conhecia alguém que morreu por causa do coronavírus - ou que conheça quem esteja em sofrimento pela partida de um parente ou amigo. +
Por isso, compilei alguns aprendizados que venho tendo nos últimos anos, como jornalista dedicada ao envelhecimento, aos cuidados paliativos, à morte e ao luto, e na apresentação do @podcastfinitude.
Read 25 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!