Seu Ednaldo, 58 anos, funcionário de uma emissora de TV, dá entrada no PS por "síncope".
Foi solicitado um CATE e o paciente recebeu um stent (lesão entre 70 - 90% na DA).
Mas ele não infartou e o stent foi mal indicado. Quais erros e vieses cognitivos foram cometidos aqui?
1o erro: "garbage in, garbage out". Assim como em uma meta-análise, se os dados que você recebe são lixo, sua interpretação também será um lixo.
Em uma conversa mais detalhada, Ednaldo conta que teve uma sensação que ia desmaiar e ficou fraco. Não perdeu a consciência.
2o erro: "negligência da taxa base". É o viés cognitivo presente quando o médico não pratica o raciocínio clínico bayesiano. Isso se faz quando o médico ignora o paciente, passando a interpretar apenas o exame.
Como evitar isso? Em primeiro lugar, lembre-se que exames não são 100% acurados. Em segundo, aprenda, de uma vez por todas, que sensibilidade e especificidade não são NADA sem a probabilidade pré-teste. Em terceiro, ponhamos em prática.
Ednaldo teve uma pré-síncope. Quantas pré-síncopes que eu atendi era infartos? Nenhuma. Só que "na Medicina, nem nunca nem sempre". Usarei portanto 1% de probabilidade pré-teste (podia ser 0,1%, mas vamos de 1%).
O que vale é a ideia, não a exatidão dos números.
Qual a sensibilidade e especificidade do supra de ST para diagnóstico de oclusão coronária aguda (OCA)?
Menor do que você pensa: 65 e 79%.
É por isso que defendo a substituição do uso do termo "infarto com supra" por "OCA", dando importância às ondas T hiper-agudas e equivalentes
É importante que você entenda que conhecer os equivalentes e a T hiperaguda, bem como ter mais experiência (muitos ECGs analisados) aumenta a sua experiência.
Como há pessoas com mais e menos experiência, também é esperada grande variabilidade dessa acurácia em mãos diferentes.
Sensibilidade: capacidade do exame detectar verdadeiros positivos em quem tem a doença.
Especificidade: capacidade do exame detectar verdadeiros negativos em quem não tem a doença.
Qual a probabilidade de termos um supra falso no ECG do Ednaldo?
Falso positivo é 1 - especificidade. Então alguém responderia que a probabilidade de falso é 1 - 0,79, portanto, 21%.
"Mas ainda há 79% de probabilidade de ser infarto, que é trágico e CATE é um exame tranquilo".
Será?
Vamos aprender a parar de neglicenciar a taxa base?
Como sensibilidade é a capacidade de detectar verdadeiros-positivos em quem tem a doença, no front, esse dado (sozinho) é inútil. Por que? Não sei vocês, mas quando peço exames, peço porque não sei se a pessoa tem ou não a doença.
A taxa base é exatamente a probabilidade do Ednaldo ter a doença. Concordamos que seria de 1% (nem acho que seja isso tudo, mas vamos).
Aplicando o teorema de Bayes simplificado:
3% de probabilidade de, sendo positivo, ser um exame verdadeiro.
Observe que passamos de 65% de possibilidade de ser verdadeiro para 3%. Apenas porque aplicamos o cálculo certo na hora certa.
Tem jeito mais fácil? Sim. O site calculator.testingwisely.com. Também o nomograma de Fagan.
"Mas espera. Isso parece uma repolarização precoce e o @smithECGBlog publicou um algoritmo para diagnóstico diferencial para ECGs assim".
De fato. Vamos usa-lo então: 9% de probabilidade de ser verdadeiro.
pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22520989/
Moral da história é que nunca, jamais, negligenciem a taxa base.

Mas sigamos porque há mais erros nessa história.
3o erro: "mas ele tinha lesão na artéria, não tinha? Isso não significa que ele infartou?"
Não. Há doenças coronárias crônicas e agudas. Aquela lesão era crônica.
4o erro: como Ednaldo, no fim das contas, não tinha nada (foi só uma pré-síncope), o stent não lhe traz benefício algum, apenas malefícios ("quando uma terapia ineficaz é indicada, restam apenas os seus danos").
Esse malefício virá em forma de probabilidade.
A probabilidade de ter uma trombose de stent em lesões crônicas é de 0,5%. Baixa, mas maior do que a minha probabilidade (que é de 0, pois não tenho stent).
Se Ednaldo nunca tiver complicações disso, 3 vieses aparecerão:
1. Armadilha da ignorância: como ele não tinha doença nenhuma, não há nenhum dado clínico ou exame que revise o diagnóstico.
O diagnóstico será falso para sempre.
O médico, para sempre, falará que atendeu um infarto que se apresentou como pré-síncope.
2. Paradoxo da popularidade: originalmente descrito para testes de check-up. Quanto maior a taxa de diagnósticos falsos (e não revisados), maior será o sucesso do médico pois mais pessoas acreditarão que foram salvas por ele.
E mais agressivos serão o médico e seus alunos.
3. Viés do Gato de Schrodinger: Ednaldo só pensa que foi salvo pelo médico e o stent porque não viveu a realidade alternativa em que, após a pré-síncope, ficou em casa.
A ausência do pensamento contra-factual (o "e se?") beneficia terapias ineficazes.
Se Ednaldo tiver a trombose do stent ou mesmo uma reestenose (10% caso stent farmacológico e 41% em stents metálicos). Os mesmos três vieses aparecerão:
1. Armadilha da ignorância: o fato de ter tido uma complicação será encarado como natural.
A complicação não indica revisão do diagnóstico, mas sim, um tratamento ainda mais agressivo:
Talvez outro stent dentro do primeiro.
Agora Ednaldo tem dois stents.
2. Paradoxo da popularidade: Ednaldo está ainda mais grato ao médico que lhe atendeu. E pensa: "mas que coração ruim o meu". De fato, agora ele é um cardiopata. Antes, não.
3. Viés do gato de Schrodinger: Ednaldo não conhece a versão de si mesmo que está, neste momento, deliciando seus fãs no twitter com seus belos vídeos. A única versão que ele conhece é a que pôs dois stents.
Caso Ednaldo morra, ainda assim haverá gratidão da sua família por causa dos 3 vieses descritos acima.
Lembre-se: Ednaldo não tinha nada.
Detalhe: todos esses conceitos estarão presentes no meu livro de Medicina Baseada em Evidências, que está pra ser lançado muito em breve.

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