Entendo o liberalismo como uma tradição múltipla. No XIX, por exemplo, foi utilizado para defender a escravidão, mas também houve uma vertente radical abolicionista.
No Brasil, por outro lado, frequentemente o que se chama de liberal é um misto de escravismo e fascismo de terno.
Moro, Folha, Estadão, complexo Globo, nossa direita em geral. Não é que os liberais aqui convivam muito bem com fascistas: o que se chama de liberal, geralmente, é fascismo puro, pois ignoram qualquer lastro normativo oriundo do princípio democrático e dos direitos humanos.
Tem uma palavrinha chata da teoria do direito, mas que explica isso: contrafactualidade. O liberalismo pressupõe um plano de validade (estado de direito, legalidade, direitos humanos, separação de poderes e soberania popular) que estabelece uma régua moral para analisar os fatos.
O que isso quer dizer? que esse plano de validade é contrafactual, ele tensiona e é tensionado pela realidade, exigindo um compromisso político que ajuste os fatos a princípios básicos da democracia e dos direitos humanos. Exige, portanto, um compromisso moral e prático.
Como todos sabem, o liberalismo muitas vezes ignorou essa contrafactualidade. A história do colonialismo e da escravidão estão aí para mostrar isso. No entanto, a própria contrafactualidade permitiu a crítica e a condenação desses sistemas dentro do próprio liberalismo.
O que passa no caso brasileiro é que, seja no passado ou no presente, o nosso liberalismo é desprovido de contrafactualidade, é desprovido de respeito moral e prático aos princípios que pretensamente proclama. Isso não é periférico no seu projeto, mas o seu núcleo constitutivo.
Isso explica não só como o básico (a exemplo dos direitos humanos e princípio da legalidade) vira coisa de comunista para esse liberalismo, mas também como a fronteira entre fascismo e liberalismo no Brasil é extremamente supérflua.
E ah, sim, minha visão crítica ao liberalismo se faz num movimento de zigue-zague entre abstração e concretude - entre o liberalismo como arranjo de princípios e o liberalismo como experiência histórica (global e local). Aí acho q conseguimos uma caracterização do tal liberal br.
Fanon, no Condenados da Terra, ao apontar a hipocrisia constitutiva dos liberais europeus (o mundo da metrópole e o mundo da colônia), dá pistas para isso. No caso do liberal brasileiro, como o trecho do Moro exemplifica, não há dois mundos: estado liberal e colônia são uno.
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Tenho uma hipótese. Com a redemocratização, a teoria crítica (especialmente sua face normativa) feita nas universidades brasileiras (naquele momento, composta por classes média e alta) sofreu uma forte inflexão, embarcando em novos modismos, entre eles, Habermas. 👇🏾
Sejam aportes revolucionários, seja uma crítica radical ao capital foram taxados como anacrônicos e demodê. Lembro na graduação ter escutado "Habermas ajuda a pensar a transformação social em um mundo sem proletariado." Esse modismo foi insuflado por bolsas de estudo na gringa.👇🏾
Um professor com passagem pela Alemanha era/é tratado como um Deus. Nos últimos anos, essa forma de pensar se mostra cada vez mais caduca, seja pela própria crise do capitalismo, seja pela emergência de intelectuais não-brancos e não-aburguesados em certos espaços, 👇🏾
Legalização de todas as drogas. Extinção da pena dos condenados pelo crime de tráfico e robusto acordo de paz com facções. Criação do parque científico e produtivo da maconha, com foco na absorção de mão de obra oriunda das comunidades até então afetadas pela guerra às drogas.
Apenas enfatizando: acordo de paz significa a primeira medida para que o Estado reconheça antigos "inimigos" como sujeitos de direitos. Dele, somado a medidas de justiça de transição, podemos falar em reparações, indenizações, políticas de memória e reconstrução nacional.
Temos aqui na América Latina e no mundo todo exemplos de políticas neste sentido que poderíamos nos inspirar e, sobretudo, aprender com os erros para lidar com a complexidade e especificidade do caso brasileiro.
Falando de filmes que gosto por aqui, fica uma recomendação: O Grande Debate. Eu o vi logo que comecei a militar no movimento negro e até hoje é uma espécie de régua moral. O filme conta a história de Melvin Tolson, revolucionário comunista, poeta e educador. 👇🏾
O longa traz Melvin treinando um grupo de jovens negros para participar de concursos de oratória no início do século XX, enfrentando o ódio branco e a segregação racial. Pra mim, o filme é especial por dois grandes motivos. 👇🏾
Primeiro, ele retrata como poucos os desafios e a busca por excelência que a população negra tem de enfrentar em sociedades racistas. No entanto, ao invés de focar na redenção ou na vitimização, ele enfatiza a luta social, por dentro e por fora do sistema. 👇🏾
Operação policial nos EUA que massacra negros: "nossa, que terrível, veja quão absurdo é o racismo".
Operação policial no Brasil que massacra negros: deixa a gente reforçar estereótipos sobre favelas e retratar essa operação como um filme de Hollywood em paz.
A polícia e o sistema político tem as mãos sujas de sangue negro, mas tudo se torna mais fácil quando se tem uma mídia que legitima e naturaliza a matabilidade dos nossos corpos.
Estamos cansados de antirracismo cosmético, Casa-Grande.
Quantas vezes Jacarezinho foi alvo de matérias nos últimos anos nos jornalões que não seja para reforçar a imagem de "bunker de criminosos"? Como você transmite uma chacina ao vivo e não pergunta sobre a legitimidade, do ponto de vista jurídico e moral, daquela operação?
No Depois do Colonialismo Mental, tem um texto do Mangabeira chamado A Questão Nacional. Ali tá a caracterização e o limite de certo projeto de esquerda para o Brasil: a identificação da burguesia parasitária e anti-nacional que temos, mas a recusa em enfrentá-la.
Aliás, o texto traz o traço anti-nacional dessa burguesia quase como uma anedota cultural, uma peculiariedade das nossas elites, ignorando que se trata de uma característica funcional das burguesias periféricas e coloniais no arranjo maior do capital.
Lembrei desse texto vendo alguns debates e vídeos aí hoje. 💅🏾
No início da pandemia, Paulo Guedes já anunciava o seu plano para o setor de serviços e microempresas: que quebrem, que fechem, que se lasquem. Parabéns, vem realizando plenamente.