A intensa cobertura da tragédia afegã repercutiu no debate público por aqui. Mas não foram somente análises acadêmicas sobre a situação do país. Apareceram diversas comparações entre 🇧🇷 e 🇦🇫, algumas procedentes, outras terrivelmente oportunistas 🧵👇
1) Vamos começar pelo oportunismo. Ao longo da semana, até pra desviar o foco da CPI e das ameaças golpistas, começaram a circular na bolsosfera comparações entre o PT e o Talibã. A única comparação possível que eles encontraram é um tema caro ao bolsonarismo: desarmamento 👇
2) Relacionar desarmamento e ditadura é desonesto, pois ignora que políticas públicas de redução ao acesso a armas (como foi o caso do PT) são baseadas em dados sobre criminalidade e violência. @goescarlos escreveu um dos melhores textos sobre o assunto:
3) Leis de desarmamento numa democracia são completamente diferentes do confisco ilegal de armas como parte de um projeto de poder. O próprio Afeganistão desarmou os cidadãos, vejam só, logo após a ocupação dos 🇺🇸, como forma de resgatar o estado de direito no país 👇
4) Ironicamente, o Talibã defendia o armamento civil, pois ele era a base de sua dominação local: milícias islâmicas-pashtunis armadas contra o governo constitucional. Só começaram a confiscar armas porque parte da população buscou resistir ao avanço do Talibã nos últimos meses👇
5) Outro argumento oportunista que apareceu: diante do avanço do Talibã, era essencial reforçar os valores do Ocidente verdadeiro. O Talibã seria o STF, o globalismo, o PT, enquanto o salvador do Ocidente seria Messias Bolsonaro. Vejam o duplo twist carpado da Carluxa Zambelli👇
6) Esse raciocínio ignora q o fundamentalismo islâmico afegão surgiu na encruzilhada de 3 valores ocidentais: colonialismo, socialismo, liberalismo. O 🇦🇫 é tido como "cemitério das potências" pq sempre se insurgiu contra a ocupação ocidental. O Talibã é a expressão atual disso 👇
7) "Ora, mas não estamos falando *destes* ocidentes, mas sim dos valores conservadores-cristãos ocidentais! Deus, pátria, família!".
Ah, sim, meu consagrado, você está falando do ocidente fascista, né? Pois bem. Esse, sim, é muito + parecido com o Talibã do que a gente imagina👇
8) Óbvio: não estou falando que Talibã e bolsofascismo sejam comparáveis em termos de violência, organização e modus operandi. A base radical de Bolsonaro não tem capilaridade, estrutura e liderança, até porque ela é muito personalista e seu líder é um covarde e falastrão 👇
9) MAS - e isso é importante - a essência de ambos os movimentos é muito parecida. Assim como o Talibã, o bolsonarismo é um tipo de movimento nacionalista religioso. Tenho estudado bastante sobre o tema, o que me dá tranquilidade para afirmar que essa base comum é preocupante 👇
10) Preocupante porque o nacionalismo religioso - seja ele cristão, islâmico ou hindu - condiciona o pertencimento nacional dos indivíduos não a critérios legais de cidadania, mas à profissão de fé. É um perigo semelhante ao do etnonacionalismo, pois ambos são segregacionistas👇
11) Ou seja, os "verdadeiros brasileiros" são cristãos, assim como os "verdadeiros afegãos" são islâmicos. E não interessa se a grande maioria do país pertença àquela religião: há de se observá-la a partir de critérios subjetivos e radicais. A fé só é boa se for do meu jeito 👇
12) O fenômeno do nacionalismo religioso é global e ganhou força no pós-Guerra Fria, como escreveu o pioneiro desses estudos, @juergensmeyer. Mas ocorria em regiões periféricas do 🌎. Nos últimos anos, contudo, ele chegou avassalador a países grandes e/ou centrais: 🇺🇸🇧🇷🇮🇱🇭🇺🇵🇱 👇
13) Da mesma forma como o bolsonarismo é expressão do nacionalismo cristão, o Talibã é o nacionalismo islâmico afegão. Ambos reivindicam uma espécie de "democracia teocrática", em que se busca reverter o secularismo em nome do povo (de Deus). Ambos pregam o monopólio religioso 👇
14) ...e usam sistematicamente símbolos de fé como parâmetros morais e legais. No limite, pregam o uso da violência como forma de promover a regeneração espiritual da sociedade contra os inimigos internos (comunistas, liberais seculares) e externos (globalistas, imperialistas) 👇
15) Querem 3 evidências da formação desse movimento nacionalista cristão aqui?
- Vejam esse discurso de Bolsonaro na Paraíba, em 2017
16) Ano passado, ministrei um curso na @FGV_EAESP chamado Estado, Religião e Nacionalismo, em que discutimos o nacionalismo religioso em perspectiva comparada (com ênfase no Brasil). Há muita coisa fascinante. Adoraria conversar com quem quer fazer pesquisas sobre o tema 😀📙
Tenho conversado com muita gente sobre o que nos aguarda dia 7. É difícil fazer uma análise fria: descartar uma tentativa de ruptura é ignorar o que Bolsonaro e seus apoiadores vêm dizendo abertamente; falar em golpe, por outro lado, soa alarmista 👇
Não tenho respostas prontas nem bola de cristal, então quero pensar alto com vocês. Para organizar o pensamento, vamos falar de algumas premissas.
1. Bolsonaro sabe que será difícil vencer as eleições. Por mais que diga que as pesquisas são enviesadas, seu círculo mais próximo👇
...sabe que derrotar Lula exigirá uma conjunção de fatores econômicos e políticos quase impossíveis a essa altura.
A carta da fraude eleitoral será usada sistematicamente até ano que vem, mas a derrota do voto impresso esvaziou esse discurso. O bolsonarismo já mudou de assunto👇
Essa é a pergunta que tem animado o debate internacional nos últimos anos. Paradoxalmente, não existem visões definitivas sobre o assunto: progressistas pró-China, conservadores anti-China.
O mundo real é muito mais complexo 🧵👇
1) Escrevo esse fio motivado pelas últimas notícias. Viktor Orbán, ultradireitista idolatrado pelo bolsonarismo, está se aproximando da 🇨🇳 para enfraquecer os alemães na UE. Sob o comando de outro "conservador", Matteo Salvini, a Itália se juntou à Nova Rota da Seda chinesa 👇
2) Isso deu um "bug" na cabeça dos bolsonaristas. Conservadores, afinal, não deveriam odiar a China e tudo o que ela representa?
Bom, tudo depende de como olhamos pra China. Para muitos, é conveniente caracterizá-la como uma "sociedade comunista" - a URSS que deu certo 👇
Vou dizer o que digo em aula: o Brasil é reflexo do fracasso das forças políticas em extinguir o pacto colonial/paternalista/patrimonialista/escravagista sobre o qual nossa sociedade foi construída.
O único homem que poderia romper com esse pacto, Getúlio, optou pela acomodação.
Hoje existem 2 grandes pactos vigentes no Brasil: um agrário-colonial (representado politicamente pelo peemedebismo e pelo centrão) e um industrial-trabalhista (cujos dois lados da moeda são representados, respectivamente, pelo liberal-tucanismo e pelo lulopetismo). A balança...
... vem pendendo para o agrário desde o colapso do modelo nacional-desenvolvimentista.
O bolsonarismo é a aliança de forças políticas que foram alijadas desses pactos - de evangélicos a neoliberais, de militares à classe média urbana e rural - com o establishment coronelista.
As manifestações de ontem revelaram uma nova categoria de isentões: aqueles que nunca reclamaram das aglomerações bolsonaristas (estimuladas, a todo o tempo, pelo presidente), mas correram para apontar a hipocrisia de quem ontem marchou contra tudo o que representa esse governo👇🏼
"Nunca foi pela vida, mas pela ideologia". Isso é tão surreal que fiquei pensando se precisaria explicar. Mas acho que precisa: tanto a esquerda quanto um crescente número de pessoas de centro e centro-direita ficaram imóveis durante 15 meses. Manifestação nem era uma hipótese 👇🏼
Enquanto Bolsonaro e seus apoiadores de estimação aglomeravam, promoviam atos a favor, sabotavam a vacina e ameaçavam a democracia, a turma do "fica em casa" estava em casa - passando aperto financeiro, assustada com a doença, velando gente querida e batendo panelas quando dava👇🏼
Sim, é verdade que as negociações com a Pfizer não foram adiante na Argentina. Mas não dá para comparar com o que aconteceu no Brasil: quando o governo argentino negou o contrato com a Pfizer, o país já tinha autorizado e estava aplicando a Sputnik V 👇🏼
O novo chanceler fez um bom discurso de posse, pontuou temas urgentes ao 🇧🇷 e ao 🌎, foi pragmático e, acima de tudo, não se rendeu ao léxico conspiratório do antecessor, o ex-Ernesto.
Mas sigo cético. As coisas não ficarão piores, mas dificilmente melhorarão, sabe por quê? 🧵👇
1) A política externa já não é monopólio do Itamaraty há muito tempo. Até os anos 70, todas as relações do Brasil com o mundo passavam pelos diplomatas, até mesmo temas econômicos.
Na queda de braço com os tecnocratas da Fazenda, o MRE frequentemente ganhava. A diplomacia... 👇
2) ...era grande fiadora do projeto nacional-desenvolvimentista, com seus vícios e virtudes.
Nos anos 80, a globalização e a redemocratização vieram mudar esse cenário.
A pressão pela abertura e modernização econômica forçaram governos como @Collor e @FHC a dinamizar... 👇