Já eram quase 10 da noite de um feriado. Chovia e fazia frio.
Havia a expectativa de que eu preparasse o jantar. Mas me enrolei com o trabalho e, de repente, ficou tarde.
Decidimos ir ao mercado, meu filho e eu, trazer um frango, uma salada, qualquer coisa simples.
Quando procurava vaga para o carro notei um vulto em pé na calçada.
Ele segurava algo com uma mão e com a outra fazia aqueles sinais que os flanelinhas fazem, e que, de alguma forma, acham que ajudam o motorista a estacionar.
Parei o carro e descemos, João e eu.
O homem devia ter uns 40 e poucos anos. Usava um boné. Segurava uma embalagem de ovos - daquelas de duas dúzias - e tinha no rosto uma expressão terrível.
Desespero.
Ele murmurou alguma coisa. Não me lembro das palavras. Lembro que não pediu dinheiro.
Pediu comida.
Apresentou os ovos que trazia na mão como evidência de sua necessidade.
No rosto queimado de sol, com um início de barba e molhado pela chuva, estava escrita a palavra FOME.
Como sei coisas demais sobre crime, tenho cautela excessiva na rua. Principalmente à noite. Principalmente em locais desertos.
Agi contra meu instinto e o que recomendo aos outros: abri a carteira, retirei uma nota e entreguei ao homem.
Entramos no mercado, João e eu, procurando um jantar nas prateleiras. Mas em todas as as prateleiras eu via o rosto do homem.
O rosto que soletrava fome.
Me arrependi. O homem pedira comida e não dinheiro. Era comida que eu deveria ter dado.
Eu estava cercado de comida.
“Filho”, eu disse ao João, “vamos na seção de padaria. Vou comprar uns pães para aquele rapaz”.
Olhei para fora, procurando pelo vulto, mas as luzes do mercado me cegavam. Lá fora, só escuridão e chuva.
O que temos e o que somos não é apenas mérito nosso. Dependemos também de sorte, do acaso e de bençãos.
Qualquer um de nós poderia ser aquele homem, desesperado, segurando uma caixa de ovos na chuva.
Qualquer um de nós.
Era o que eu pensava enquanto escolhia o jantar da minha família.
Paguei as compras e voltei à rua com meu filho, um saco de pães quentes na mão.
Onde moraria aquele homem?
Em que favela ou bairro distante vivia sua família?
Como ele sobrevivera durante os longos meses do "fique em casa", sem emprego, sem trabalho, a cada dia com menos comida?
Como ele controlara o desespero que finalmente explodira naquela noite fria?
Essas são respostas que eu jamais terei.
Quando cheguei no meu carro a rua estava vazia.
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Vejam a resposta exemplar dada pelo Secretário de Segurança de Minas Gerais ao Presidente do “Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de MG”, que questionava a operação da Polícia Militar que neutralizou os 25 vagabundos (termo técnico) do “novo cangaço”.
Aconteceu com um amigo meu. Vou deixar ele contar:
“Dia desses peguei um processo criminal em fase de execução da pena. O vagabundo queria sair pra visitar a mãe.
Faltavam ainda 7 anos de pena a serem cumpridos.
7 ANOS.
A ‘vítima da sociedade’ tinha mais de 5 anotações criminais. No cumprimento da pena anterior, voltara a delinquir JUSTAMENTE DURANTE A SAÍDA TEMPORÁRIA.
Fora preso outra vez em flagrante, e agora pedia novamente uma saída para ‘ver a mãe’.
O juiz concedeu a saída.
Disse que o vagabundo tinha bom comportamento e que já havia cumprido o tempo de pena necessário para gozar do benefício.
Um conhecido, ou um amigo antigo, ou um parente, se aproxima de mim meio sem jeito, e dispara a pergunta:
“Roberto, eu aceito a sua opção, acredito que você tenha seus motivos, mas não consigo entender. Votei no Bolsonaro, mas desde a posse as decepções vem se sucedendo. E você continua apoiando o Presidente?”
Eu sempre respondo da mesma forma:
“Muito obrigado pela pergunta”, eu digo, “e pela abordagem respeitosa”.
Faço uma pausa e digo:
“Mas para continuar essa conversa, eu preciso que você faça uma coisa para mim”.