Décima condenação do Brasil pela Corte IDH. Homicídio (hoje seria feminicídio) cometido por ex-deputado na Paraíba. Os deveres estatais de investigar, processar e punir são reafirmados.
Esta décima condenação do Brasil põe à mostra a absurda ineficiência do sistema penal brasileiro e seu notório desleixo para com o direito à vida e os direitos das vítimas e de seus familiares quanto ao acesso à justiça e à proteção judicial. Dez sentenças em 15 anos. Nota zero.
Em 19/06/1998, foi aberta a investigação policial pela morte de Márcia Barbosa de Souza. Devido à imunidade parlamentar, o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima não pôde ser processado. As duas solicitações feitas à Assembleia Legislativa da Paraíba foram indeferidas…
Graças a uma emenda constitucional, a autorização legislativa deixou de ser exigida, e o MPPB pôde denunciar o réu em 2003. Ele foi condenado a 16 anos de prisão em 2007, por homicídio e ocultação de cadáver. Recorreu. No entanto, morreu sem cumprir a pena.
Esta é a primeira sentença na qual a Corte Interamericana analisa a imunidade parlamentar em relação ao direito de acesso à justiça e quanto ao dever de investigar com a devida diligência a morte violenta de uma mulher.
Na sentença em Barbosa de Souza e Outros, a Corte determinou que a imunidade parlamentar foi concebida como uma garantia da independência das corporações legislativas para o exercício de atividades parlamentares e que não pode ser usada como um privilégio pessoal do parlamentar.
Para a Corte IDH, “em nenhuma hipótese poderia se tornar um mecanismo de impunidade, questão que, se acontecesse, erodiria o estado de direito, seria contrária à igualdade perante a lei e tornaria ilusório o acesso às pessoas afetadas à justiça.”
A Corte concluiu que a forma como a imunidade parlamentar brasileira e a do Estado da Paraíba foram regulamentadas, contrariava o direito de acesso à justiça, sendo portanto inconvencionais.
A Corte afirmou ainda que a recusa da AL paraibana em suspender a imunidade parlamentar do então deputado foi “um ato arbitrário”, sendo essa recusa uma causa que levou à impunidade e que tornou ilusório o acesso de sua família à justiça.
Na sentença, a Corte IDH também concluiu que a investigação e o processo penal pelo homicídio de Márcia Barbosa de Souza foram marcados por práticas discriminatórias com base em gênero e não foram conduzidos conforme uma adequada perspectiva de gênero.
Neste ponto, @CorteDirHumanos assinalou que, na investigação e na ação penal, “a conduta e a sexualidade de Márcia Barbosa de Souza foram objeto de atenção especial, levando à construção de sua imagem como provocadora ou merecedora do ocorrido”.
Na sentença, também se pontuou que essa indevida prática processual serviu para “desviar o foco das investigações” por meio de estereótipos relacionados a aspectos da vida pessoal da vítima.
Para a Corte, preconceitos e estereótipos de gênero afetam a objetividade das autoridades encarregadas de investigar crimes, influenciando sua percepção quanto à ocorrência ou não de um ato de violência, a partir da avaliação da credibilidade de testemunhas e da própria vítima.
Segundo a Corte, os estereótipos “distorcem as percepções e levam a decisões baseadas em crenças e mitos preconcebidos, ao invés de fatos”, o que por sua vez pode levar à denegação da justiça e à revitimização das pessoas denunciantes.
Como facilmente se percebe, essa sentença dialoga diretamente com a Lei 14.245/2021, publicada em 23/11, que busca exatamente impedir esse tipo de abuso, pelo uso de estereótipos em ações penais por crimes contra a dignidade sexual, especialmente os que têm mulheres como vítimas.
Nos pontos resolutivos, a Corte IDH condenou o Brasil a:

1. Fazer as publicações indicadas no parágrafo 176 da Sentença, no prazo de seis meses a contar da notificação.
2. Realizar um ato de reconhecimento de responsabilidade internacional, em relação aos fatos do caso, nos termos dos parágrafos 177 e 178 da Sentença.
3. Elaborar e implementar um sistema nacional e centralizado de coleta de dados que permita a análise quantitativa e qualitativa dos atos de violência contra as mulheres e, em particular, das mortes violentas de mulheres, nos termos do parágrafo 193 da Sentença.
4. Elaborar e implementar um plano de capacitação e conscientização permanente de policiais e de operadores de justiça do Estado da Paraíba, com as perspectivas de gênero e raça, nos termos do parágrafo 196 Sentença.
5. Realizar uma jornada de reflexão e conscientização sobre as repercussões do feminicídio, da violência contra a mulher e do uso do instituto da imunidade parlamentar, nos termos do parágrafo 197 da Sentença.
6. Adotar e implementar um protocolo nacional para a investigação de feminicídios, nos termos dos parágrafos 201 e 202 da Sentença.
7. Pagar as quantias estabelecidas nos § 212 e 218 da Sentença a título de indenização pela omissão na investigação do homicídio de Márcia Barbosa de Souza; indenização por dano material e moral; e restituição de custas e despesas, nos termos dos §§224 a 229.
8. Reembolsar ao Fundo de Assistência Jurídica às Vítimas da Corte Interamericana de Direitos Humanos os valores gastos durante a tramitação do caso, nos termos dos parágrafos 223 e 229 da Sentença.
9. No prazo de um ano a partir da notificação da Sentença, apresentar à Corte um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento, sem prejuízo do disposto no parágrafo 176.
10. Submeter-se à fiscalização da Corte quanto ao cumprimento integral desta Sentença, nos termos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

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