“A incrível história dos exames que, matematicamente, não servem para nada” ou “Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico”.
Você escolhe o nome do filme após ler esse fio aqui.
E espero que entenda o problema que demonstro.
Para entender esse fio, vamos às definições básicas:
- Sensibilidade: probabilidade de um teste ser positivo em quem tem a doença.
- Especificidade: probabilidade de um teste ser negativo em quem não tem a doença.
Leia de novo a definição para perceber um detalhe: é que para usar sensibilidade e especificidade, o médico precisa saber de antemão quem tem e quem não tem a doença.
E nós pedimos exames para DESCOBRIR se alguém tem ou não a doença.
Não entendeu? Veja um exemplo prático.
Você atende uma pessoa e quer saber se ela está infartando ou não. O ECG tem 68% de sensibilidade e 97% de especificidade. Qual dos dois usará?
Nenhum, porque você não sabe em qual das definições ele entra. Ora, ele tem ou não a doença??
É triste pensar que fundamentamos o nosso conhecimento sobre exames em dois conceitos que não foram feitos para nós usarmos na linha de frente. Sensibilidade e especificidade NÃO SÃO ÚTEIS PARA OS MÉDICOS.
O que temos que usar é a razão de verossimilhança. Veja como funciona.
Razão de verossimilhança é quantas vezes aumenta ou diminui a chance de alguém ter a doença dado que aquele exame foi positivo ou negativo. Sim, são calculados através da sensibilidade e especificidade, de acordo com a fórmula abaixo.
Mas quantas vezes você ouviu falar nisso?
Explicado o básico, vamos usar o raciocínio correto para o exemplo do paciente que eu quero saber se está infartando usando um ECG:
“Dado que o exame foi positivo, a chance de ele estar infartando aumentou em 22,67 vezes” (porque essa é a RV+ do ECG nesse cenário descrito).
E da fórmula da razão de verossimilhança, nasce um problema prático: o problema dos exames cuja sensibilidade e especificidade somadas resultam em 1 (ou 100).
Por exemplo, 97% de especificidade e 3% de sensibilidade.
E por que? Porque o cálculo das RV+ e RV- será igual a 1.
E uma RV+ e RV- igual a 1 significa que a chance do paciente ter a doença foi multiplicada por 1 caso o exame seja positivo e por 1 caso seja negativo.
Independente da prevalência e da probabilidade pré-teste.
Em outras palavras, meu caro colega médico, é um exame inútil.
Sensibilidade e especificidade são inúteis para o médico porque, além de partirem de um conceito irrealista para a prática (nós não sabemos quem tem e quem não tem a doença), induzem a poderosos vieses cognitivos (achar que um exame inútil possui serventia para algo).
Se a avaliação de exames é um dos pilares da profissão médica e se todo o (ou esmagadora parte do) ensino médico desse pilar é pautado em dois conceitos inúteis e ilógicos, o que esperar da atuação dos médicos?
Precisamos aprender a interpretar exames, esse sim é o nome do filme
• • •
Missing some Tweet in this thread? You can try to
force a refresh
Gutierrez é um respeitado médico especialista. Se vangloria da sua capacidade diagnóstica e de suas decisões terapêuticas satisfatórias.
Em 2020, ele achou racional prescrever cloroquina. Em 2021, faz campanha contra a vacinação.
Segue o fio para entender.
No primeiro atendimento do dia, Gutierrez atende um resfriado comum. Com anos de atuação, veio a constatação que muitos pacientes exigem remédios para “justificar a consulta”.
O resfriado é uma doença auto-limitada: todos os pacientes melhorarão um dia ou outro.
Quando o paciente melhora, Gutierrez recebe elogios pela sua receita “diferenciada” -um kit de vitaminas e outras medidas ineficazes.
Gutierrez esquece do poder que a história natural da doença tem nesse caso - se o paciente já iria se curar, como afirmar que ele impactou nisso?
O que as pessoas pensam que é VERSUS o que é de verdade.
O fio:
O que pensam que é:
- Uma disciplina pouco importante em comparação a anatomia e farmacologia.
O que é de verdade:
- A mãe de todas as disciplinas. A anatomia e a farmacologia (e outras básicas) servem como fundamento para a prática médica que se pauta baseada em evidências.
O que pensam que é:
- Uma disciplina chata em que obrigam a decorar fórmulas, índices e leis.
O que é de verdade:
- Uma disciplina em que se ensina a pensar criticamente, a desconfiar de charlatões e conseguir ler e interpretar se um artigo científico deve modificar conduta
Um investidor da Faria Lima descobriu uma doença rara que acomete 1 a cada 10 mil pessoas! A acurácia do exame é 99,9%.
Qual a probabilidade de ter mesmo a doença?
Não fique triste se respondeu 99,9%. A maioria dos médicos também acha. Mas está errado e eu vou te explicar no fio
A interpretação médica de exames é muito mais complexa do que se faz parecer pela Medicina mecanicista tradicional com seu binômio:
Positivo x Negativo.
Na verdade, a interpretação de cada exame individualmente deve ser:
Verdadeiro e falso positivo x verdadeiro e falso negativo.
Essa interpretação entre exames verdadeiros ou falsos em Medicina é um dos pilares da atuação médica (e de profissionais da saúde em geral).
Só que, por incrível que pareça, não é ensinada corretamente pelo currículo médico atual da maioria das universidades brasileiras.
Isabela é uma mulher de 57 anos com três filhos, planejando sua futura aposentadoria.
Isabella (com dois L) é a mesma pessoa, mas em um universo paralelo.
Ambas possuem uma doença grave, mas só uma delas descobriu esse problema em estágios iniciais.
Segue o fio.
Isabela fez um exame de check-up, o que lhe fez descobrir essa doença ainda em estágios iniciais.
A partir daí, Isabela recebeu todo um planejamento de terapia da doença, que envolvia múltiplas ações interdisciplinares. Sua vida, agora, seria uma luta pela cura.
Essa terapia escolhida tem benefício comprovado na literatura, que é o seguinte: reduz a probabilidade de morrer em 5 anos, de 82 para 10%.
Com um resultado fantástico como esse, quem, em sã consciência, poderia ser contrário?
Miguel é um homem de 41 anos preocupado com a saúde. Faz low carb, se exercita 5 vezes por semana.
Michael é a mesma pessoa, mas vive em um universo paralelo. Só que Michael comprou um Apple Watch. E esse foi só o começo de uma cascata que mudou a vida de Michael.
Segue o fio.
Os médicos de Michael não fizeram nada de errado. Apenas seguiram as diretrizes.
Só que seguir as diretrizes, nesse caso, leva a uma cascata iatrogênica. O que é isso? É quando, devido a um simples fato, uma série de eventos probabilísticos pode acarretar em um erro ou dano.
Michael fez o ECG que lhe diagnosticou fibrilação atrial, uma arritmia comum e que pouco tem a ver com doença coronária.
Só que é um erro comum dos cardiologistas o de sobrevalorizar a doença coronária. A cascata continuou com testes para coronária.
- a maioria dos egressos não é ensinada a interpretar (corretamente) um simples exame
- a maioria não sabe interpretar corretamente a resposta de um paciente a uma terapia (propício a acreditar em charlatões)
- sim, os dois pilares da nossa profissão
- a maioria não sabe interpretar artigos científicos (a disciplina que se presta a isso é negligenciada por focar em cálculos inúteis e pouco na prática)
- acham que passar na prova de residência é atestado de sabedoria. A prova é, sob raras exceções, um festival de cloroquinices
- pelo sistema de provas irrealistas, pouco espaço se dá aos questionamentos. Muito se dá ao ato de decorar dogmas.
- em muitas universidades e disciplinas, o método é a imposição do terror aos jovens, que podem querer espelhar isso em seu futuro.