Miguel é um homem de 41 anos preocupado com a saúde. Faz low carb, se exercita 5 vezes por semana.
Michael é a mesma pessoa, mas vive em um universo paralelo. Só que Michael comprou um Apple Watch. E esse foi só o começo de uma cascata que mudou a vida de Michael.
Segue o fio.
Os médicos de Michael não fizeram nada de errado. Apenas seguiram as diretrizes.
Só que seguir as diretrizes, nesse caso, leva a uma cascata iatrogênica. O que é isso? É quando, devido a um simples fato, uma série de eventos probabilísticos pode acarretar em um erro ou dano.
Michael fez o ECG que lhe diagnosticou fibrilação atrial, uma arritmia comum e que pouco tem a ver com doença coronária.
Só que é um erro comum dos cardiologistas o de sobrevalorizar a doença coronária. A cascata continuou com testes para coronária.
Outro teste positivo e, de repente, Michael, com sua vida saudável, estava fazendo um cateterismo. Que demonstrou oclusão grave de algumas das suas artérias coronárias (as que irrigam o coração).
É um preditor que essa pessoa pode vir a ter um infarto no futuro.
O tratamento disso pode ser feito com cirurgia “de safena” (como se chama por aí). O nome de verdade é revascularização miocárdica e a artéria mamária hoje tem muito mais importância que a veia safena nessa técnica.
O cirurgião faz uma ponte até uma porção DEPOIS da oclusão.
Até aqui tudo bem, você deve estar pensando. Michael teve a vida salva!
Só que não. E eu vou mostrar onde você errou nesse raciocínio: foi quando eu falei que Michael PODE ter um infarto devido a esse problema.
Esse “PODE” (probabilístico, como é a Medicina) muda tudo. Vamos ver?
Agora vamos ser realistas (como todo médico deve ser): o que está em jogo aqui é uma briga de risco x benefício.
O benefício é reduzir a chance de ter um infarto, que leva 3,5% dos doentes à morte. O risco é o da cirurgia, que leva 3,5% das pessoas à morte.
Sem falar dos riscos operatórios de AVC (debilitando uma pessoa de 41 anos), doença renal, pneumonia, internação prolongada…
Será que você já está pensando diferente sobre o caso de Michael?
A única maneira de saber se essa cirurgia é benéfica para Michael não é deixando o sentimental falar mais alto (“nossa, eu que não queria ficar com coronárias ocluídas sabendo que posso ter um infarto”). Essa visão, nós deixamos para os leigos menos instruídos.
Nós temos que nos perguntar qual o risco x benefício da cirurgia. Agora é hora do cardiologista se debruçar para encontrar o estudo que compara cirurgia x tratamento clínico em assintomáticos.
Fica o desafio.
Spoiler: não existe, não com tratamento clínico moderno.
E Michael, que é um paciente real, se sente grato a Deus, à Apple e aos seus médicos por terem descoberto esse problema.
Michael é um sobrevivente de uma cirurgia que lhe trouxe 3,5% de risco de morte e mais 3,5% de risco de AVC. Ele não calculou bem o risco de infarto.
Enquanto isso, Miguel (o que não comprou um Apple Watch) vive sua vida saudável. Enquanto Michael entrava em sala de operação (e corria o risco que já citei), Miguel dava início a um novo projeto na empresa, projeto cujo sucesso acarretaria em uma promoção.
Aos 47 anos, Miguel atingiu o topo da carreira. Empreendeu e investiu dinheiro, garantindo a vida dos seus filhos, que estavam prestes a entrar para a faculdade.
Aos 71 anos, teve um infarto. Não morreu, como não morrem 96,5% das pessoas. Viveu até os 82 anos.
Você deve estar pensando: viu só? Ele teve um infarto!
Sim, e o que garante que Michael também não terá? A cirurgia não reduz a 0 a chance. Outro spoiler: nenhuma terapia na Medicina faz isso.
Michael só é grato porque não conhece Miguel. O fato de ele estar vivo agora é, para ele, uma prova de que a terapia foi um sucesso..
A ausência de pensamento contrafactual (não pensar no “e se?”) quando analisamos risco x benefício em terapias é o viés do gato de Schrodinger.
Sobrevalorizamos benefício, desvalorizamos o risco. E não conhecemos a realidade paralela em que nada aconteceu.
Além disso, sobrevalorizamos o sentimental e desvalorizamos as evidências científicas. Médicos e leigos fazem isso.
Tanto é que se Michael tivesse tido um AVC ou morrido em decorrência da cirurgia, familiares encarariam como uma tragédia (“pelo menos morreu lutando”) e médicos encarariam como um mal necessário (“fez o que devia e, infelizmente, problemas ocorreram”).
A gratidão fica presente mesmo que complicações ocorram. O viés do gato de Schrodinger beneficia, portanto, terapias ineficazes.
Beneficia também a sobrevalorização das terapia (viés de comissão) e até mesmo a super-judicialização da Medicina: um paciente grato não processa.
Também gostaria de destacar como a cascata começou: com um Apple Watch.
Aquele leigo que pensa “exame nunca é demais”, “que mal faz? eu quero mais é saber o que eu tenho”.
Bem, primeiro que exames podem ser falsos na maioria das vezes (isso é matemático).
Segundo que, mesmo verdadeiros, podem levar a cascatas iatrogênicas como essa que Michael entrou como um passageiro.
Uma vez dado o pontapé inicial, nada tira o paciente dessa cascata.
Observação 1: é óbvio que existem tratamentos comprovadamente benéficos para determinadas populações. Entrar em uma cascata, nesse caso, é bom.
Observação 2: a cirurgia pode ser benéfica em algumas populações. Em Michael, não sabemos.
Observação 3: pelo viés do Gato de Schrodinger, a experiência pessoal (“eu fiz e sobrevivi”) não interessa.
Observação 4: o caso é real. E terminou bem. Mas podia não ter terminado. Como podia nem ter acontecido.
Observação 5: como leigo, para evitar isso, aprenda a discutir risco x benefício com seu médico. Aprenda também a entender Medicina como probabilística.
Como médico, aprenda que prova de residência e decoreba de diretriz não faz de você um bom médico.
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- a maioria dos egressos não é ensinada a interpretar (corretamente) um simples exame
- a maioria não sabe interpretar corretamente a resposta de um paciente a uma terapia (propício a acreditar em charlatões)
- sim, os dois pilares da nossa profissão
- a maioria não sabe interpretar artigos científicos (a disciplina que se presta a isso é negligenciada por focar em cálculos inúteis e pouco na prática)
- acham que passar na prova de residência é atestado de sabedoria. A prova é, sob raras exceções, um festival de cloroquinices
- pelo sistema de provas irrealistas, pouco espaço se dá aos questionamentos. Muito se dá ao ato de decorar dogmas.
- em muitas universidades e disciplinas, o método é a imposição do terror aos jovens, que podem querer espelhar isso em seu futuro.
Se tratamentos "alternativos" ou tidos como ineficazes não funcionam, por que pareceram funcionar pra alguns?
Afinal, tenho certeza que você já ouviu a clássica (e inútil) frase "mas eu tomei ivermectina e me curei".
Segue o fio então.
1. Efeito das expectativas: a esperança que um tratamento funcione pode trazer melhora em desfechos subjetivos como "mal estar", mas nunca em desfechos duros como "morte". Erroneamente chamado de "efeito placebo" porque o placebo não possui efeito, as expectativas sim.
2. Retorno à média: bastante conhecido em várias áreas do conhecimento humano, é o que acontece quando eventos anormais (ficar muito doente) é sucedido por um evento médio (estar sadio). A melhora após o uso do tratamento "de mentirinha" pode se dever tão somente a isso.
Pequeno tutorial de como fazer QUALQUER terapia parecer ser útil (e lotar o consultório de pacientes enganados):
1. Mostre um mecanismo que explique o tratamento. Nem precisa ser real, basta ser simples o bastante pra fazer sentido na cabeça do leigo e do médico leigo.
2. Passe uma imagem de infalibilidade. Nada na Medicina é 100% eficaz e seguro, mas os pacientes não sabem disso e ainda bem! Que continuem sem saber.
3. Cometa cherry picking. Omita estudos de boa qualidade e mostre a seu paciente apenas aqueles que confirmam sua narrativa
4. Nomeie pelo menos três gurus (obviamente charlatões) que passam um ar de “a Medicina não sabe o que eu sei”. Quanto mais famosos atendidos no Instagram, melhor.
5. Passe um ar de vanguardista. O paciente não conseguirá perceber a diferença entre isso e irresponsabilidade.
Mais um estudo de um proeminente “cientista” sobre ivermectina, um medicamento ineficaz contra covid, é despublicado por fraude. Toda a literatura sobre esse tema é composta por fraudes ou estudos fracos
Entenda essa fraude e aprenda a se proteger dos charlatões e manipuladores.
A Journal of Intensive Care Medicine despublicou o estudo de Pierre Kory e Paul Marik por indícios de fraude em sua pesquisa.
Nesse estudo, os autores apontaram uma mortalidade de 6,1% e compararam com a mortalidade da mesma população em outros artigos, que era de 15,6 a 32%.
Isso não engana qualquer pessoa que entende o mínimo de interpretação de estudos. Essa metodologia, mesmo antes da fraude, é podre.
Mais podre ainda é a fraude: a mortalidade dos usuários dos medicamentos foi de 28%, segundo o hospital onde estavam os pacientes.
Ednaldo dá entrada no PS com relato de síncope (desmaio).
Pela solicitação de um exame comum em emergências (troponina), Ednaldo implantou um stent em sua coronária.
Um erro foi cometido aqui e você, possivelmente, não percebeu. Porque é tão difícil detectar falso positivos?
No hospital em que Ednaldo resolveu ir, existe até um "protocolo" para pacientes que queixam de desmaio (ultrapassado e que objetiva o lucro do hospital, mas existe):
- Eletrocardiograma, ecocardiograma, Doppler de carótidas e TC de crânio, troponina.
Ednaldo que, na verdade, nem desmaiara, apenas se sentira tonto (mas ninguém perguntou) se sentiu bastante acolhido e aproveitou a oportunidade, afinal "exame nunca é demais". "O convênio está pagando mesmo". "Esse hospital é bom".
Wesley teve um diagnóstico falso em uma ida ao hospital.
Marrone é o médico que errou. Mas Wesley e Marrone não perceberam.
Pelo contrário, Wesley é grato ao seu médico. E Marrone acaba de adquirir uma experiência que causará dano aos seus próximos pacientes.
Quer saber por que?
Um dia antes da chegada de Wesley, o Dr Marrone passou por isso:
- O seu mentor solicitou uma angiotomografia para um paciente com escore de Wells baixo. Apesar de achar estranho, Wesley foi surpreendido pelo resultado positivo. O paciente tinha TEP*.
* Traduzindo:
- TEP: trombo-embolismo pulmonar, uma doença potencialmente muito grave.
- Angiotomografia: um exame indicado pra seu diagnóstico
- escore de Wells: um cálculo que fazemos para ver se o paciente tem indicação de fazer a angiotomografia. Só escores altos indicam.