Isabela é uma mulher de 57 anos com três filhos, planejando sua futura aposentadoria.
Isabella (com dois L) é a mesma pessoa, mas em um universo paralelo.

Ambas possuem uma doença grave, mas só uma delas descobriu esse problema em estágios iniciais.
Segue o fio.
Isabela fez um exame de check-up, o que lhe fez descobrir essa doença ainda em estágios iniciais.

A partir daí, Isabela recebeu todo um planejamento de terapia da doença, que envolvia múltiplas ações interdisciplinares. Sua vida, agora, seria uma luta pela cura.
Essa terapia escolhida tem benefício comprovado na literatura, que é o seguinte: reduz a probabilidade de morrer em 5 anos, de 82 para 10%.

Com um resultado fantástico como esse, quem, em sã consciência, poderia ser contrário?
De fato, após muita luta, Isabela sobreviveu os primeiros 5 anos e morreu apenas aos 67 anos de idade - 10 anos, de muita luta, depois.

Sua terapia lhe fez sobreviver além dos 5 anos, como previsto em estudos.
Enquanto isso, Isabella (com dois L) não fez check-up e não descobriu aquela tal doença grave em estágio inicial.
Pelo contrário, aos 64 anos, quando descobriu, pouco lhe restava a fazer. Viveu em terapia de conforto pelos seus últimos 3 anos, morrendo aos 67 anos.
Só que, dos 57 aos 64 anos, Isabella conseguiu sua aposentadoria, foi à formatura do seu mais velho nos Estados Unidos e passou 1 ano viajando por Portugal e Espanha com seu marido.
Se apaixonou pelos vinhos da Palmela e empreendeu na importação desses vinhos para o Brasil.
Com Isabella (com dois L), aconteceu exatamente o que ocorre quando essa doença é descoberta em estágios tardios: uma morte rápida (em menos de 5 anos).

Mas... você percebeu o detalhe?
O "detalhe" é que Isabela e Isabella tiveram a exata mesma probabilidade de morrer pela doença. E isso significa que o benefício que você atribuía ao check-up e à terapia precoce nesse cenário descrito acaba de ir pelo ralo.

Os próximos tweets vão te explicar.
O "viés do tempo ganho" é quando, pela descoberta precoce de uma condição, ocorre a IMPRESSÃO de que se viveu mais, mas isso não ocorreu de verdade.

Essa impressão é um viés cognitivo tão poderoso que está presente até em estudos científicos.
A figura abaixo, do Manual de Medicina Baseada em Evidências, mostra que a probabilidade de Isabela morrer em 5 anos continua sendo exatamente igual, mesmo que estatisticamente se demonstre outra coisa.
Observe bem: o check-up colocou pessoas menos graves no denominador.
O viés do tempo ganho impacta diretamente no aparecimento do viés do gato de Schrodinger (descrito em meu último fio, vai lá ver):
Isabela só é grata pelos últimos anos de vida, ao check-up e aos médicos porque não conhece Isabella, a sua versão amante de vinhos emergentes.
Pelo viés do gato de Schrodinger, Isabella (com dois L) pode até se sentir injustiçada ao ouvir histórias como a de Isabela, que descobriu a doença precocemente e teve chance de tratar. E ganhou mais anos de vida

Pode se sentir tão injustiçada a ponto de judicializar o problema.
Os médicos que não conhecem esses vieses se tornam agentes proativos dessas políticas de saúde: "quanto mais check-up, mais diagnósticos, maior a chance de sobrevivência em 5 anos".

A narrativa é bonita, cheia de boas intenções: "cuide da sua saúde", dizem os jornais matinais.
Quanto mais casos como o de Isabela (que ilusoriamente viveu mais), maior o apelo da sociedade e dos médicos a fazerem o mesmo, adoecendo a população, aumentando denominadores.
E isso impacta no aparecimento de mais um viés cognitivo: "o paradoxo da popularidade".
O "paradoxo da popularidade", também descrito no Manual de Medicina Baseada em Evidências, é o que faz com que políticas de rastreio e check-up sejam tão bem vistas pela sociedade, mesmo quando são ineficazes.

O sistema passa a alimentar a si próprio.
Alimentando a si próprio, parecendo ser eficaz travestido de todos os problemas citados, ocorre isso:
- Mais investimento
- Aumento do alcance da campanha
- Perpetuação da estratégia ineficaz
- Alertas de especialistas são ignorados
- Mais mulheres têm benefício apenas ilusório.
As consequências de todas essa cadeia de eventos negativos já estão presentes em nossa sociedade:
- "Quanto mais exames, melhor"
- "Eu quero mais é saber o que eu tenho"
- "O convênio paga mesmo..."
- "Deus me livre de não ter uma chance"
- "É só um exame, que mal faz?"
A narrativa, que parece ser tudo o que interessa ao ser humano, nesse caso, é falsa e distante da crua realidade que as mulheres podem ter que enfrentar:

Para essa doença, um diagnóstico precoce apenas rouba qualidade de vida. Não traz nenhum benefício líquido às doentes.
Os vieses do tempo ganho, do gato de Schrodinger e o paradoxo da popularidade beneficiam terapias ineficazes e perpetuam falácias lógicas.
Essa problemática impacta negativamente na saúde de todos nós.
Obs 1: para se provar que uma terapia é eficaz nesse contexto, o pesquisador precisa ter artifícios para excluir o viés do tempo ganho e demonstrar que Isabela (com um L) viveu mais do que viveria sem rastreamento.
Obs 2: esse post não é generalizável a todo tipo de terapia na Medicina. Ele fala apenas sobre os rastreios e check-ups ineficientes.

Obs 3: por todos os vieses descritos, a experiência pessoal ("pois eu fiz meu check-up e estou viva) não interessa.
Obs 4: como leigo, para evitar isso, aprenda a discutir risco x benefício com seu médico. Aprenda, também, a entender a Medicina como probabilística.

Como médico, aprenda que prova de residência e decoreba de diretriz e artigos não fazem de você um bom profissional.

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25 Dec
Miguel é um homem de 41 anos preocupado com a saúde. Faz low carb, se exercita 5 vezes por semana.

Michael é a mesma pessoa, mas vive em um universo paralelo. Só que Michael comprou um Apple Watch. E esse foi só o começo de uma cascata que mudou a vida de Michael.

Segue o fio.
Os médicos de Michael não fizeram nada de errado. Apenas seguiram as diretrizes.

Só que seguir as diretrizes, nesse caso, leva a uma cascata iatrogênica. O que é isso? É quando, devido a um simples fato, uma série de eventos probabilísticos pode acarretar em um erro ou dano.
Michael fez o ECG que lhe diagnosticou fibrilação atrial, uma arritmia comum e que pouco tem a ver com doença coronária.

Só que é um erro comum dos cardiologistas o de sobrevalorizar a doença coronária. A cascata continuou com testes para coronária.
Read 23 tweets
30 Nov
Plot twist do ensino médico:

- a maioria dos egressos não é ensinada a interpretar (corretamente) um simples exame
- a maioria não sabe interpretar corretamente a resposta de um paciente a uma terapia (propício a acreditar em charlatões)
- sim, os dois pilares da nossa profissão
- a maioria não sabe interpretar artigos científicos (a disciplina que se presta a isso é negligenciada por focar em cálculos inúteis e pouco na prática)
- acham que passar na prova de residência é atestado de sabedoria. A prova é, sob raras exceções, um festival de cloroquinices
- pelo sistema de provas irrealistas, pouco espaço se dá aos questionamentos. Muito se dá ao ato de decorar dogmas.
- em muitas universidades e disciplinas, o método é a imposição do terror aos jovens, que podem querer espelhar isso em seu futuro.
Read 4 tweets
29 Nov
Se tratamentos "alternativos" ou tidos como ineficazes não funcionam, por que pareceram funcionar pra alguns?

Afinal, tenho certeza que você já ouviu a clássica (e inútil) frase "mas eu tomei ivermectina e me curei".
Segue o fio então.
1. Efeito das expectativas: a esperança que um tratamento funcione pode trazer melhora em desfechos subjetivos como "mal estar", mas nunca em desfechos duros como "morte". Erroneamente chamado de "efeito placebo" porque o placebo não possui efeito, as expectativas sim.
2. Retorno à média: bastante conhecido em várias áreas do conhecimento humano, é o que acontece quando eventos anormais (ficar muito doente) é sucedido por um evento médio (estar sadio). A melhora após o uso do tratamento "de mentirinha" pode se dever tão somente a isso.
Read 7 tweets
21 Nov
Pequeno tutorial de como fazer QUALQUER terapia parecer ser útil (e lotar o consultório de pacientes enganados):

1. Mostre um mecanismo que explique o tratamento. Nem precisa ser real, basta ser simples o bastante pra fazer sentido na cabeça do leigo e do médico leigo.
2. Passe uma imagem de infalibilidade. Nada na Medicina é 100% eficaz e seguro, mas os pacientes não sabem disso e ainda bem! Que continuem sem saber.

3. Cometa cherry picking. Omita estudos de boa qualidade e mostre a seu paciente apenas aqueles que confirmam sua narrativa
4. Nomeie pelo menos três gurus (obviamente charlatões) que passam um ar de “a Medicina não sabe o que eu sei”. Quanto mais famosos atendidos no Instagram, melhor.

5. Passe um ar de vanguardista. O paciente não conseguirá perceber a diferença entre isso e irresponsabilidade.
Read 7 tweets
10 Nov
Mais um estudo de um proeminente “cientista” sobre ivermectina, um medicamento ineficaz contra covid, é despublicado por fraude. Toda a literatura sobre esse tema é composta por fraudes ou estudos fracos

Entenda essa fraude e aprenda a se proteger dos charlatões e manipuladores.
A Journal of Intensive Care Medicine despublicou o estudo de Pierre Kory e Paul Marik por indícios de fraude em sua pesquisa.
Nesse estudo, os autores apontaram uma mortalidade de 6,1% e compararam com a mortalidade da mesma população em outros artigos, que era de 15,6 a 32%.
Isso não engana qualquer pessoa que entende o mínimo de interpretação de estudos. Essa metodologia, mesmo antes da fraude, é podre.
Mais podre ainda é a fraude: a mortalidade dos usuários dos medicamentos foi de 28%, segundo o hospital onde estavam os pacientes.
Read 12 tweets
9 Nov
Ednaldo dá entrada no PS com relato de síncope (desmaio).
Pela solicitação de um exame comum em emergências (troponina), Ednaldo implantou um stent em sua coronária.
Um erro foi cometido aqui e você, possivelmente, não percebeu. Porque é tão difícil detectar falso positivos?
No hospital em que Ednaldo resolveu ir, existe até um "protocolo" para pacientes que queixam de desmaio (ultrapassado e que objetiva o lucro do hospital, mas existe):
- Eletrocardiograma, ecocardiograma, Doppler de carótidas e TC de crânio, troponina.
Ednaldo que, na verdade, nem desmaiara, apenas se sentira tonto (mas ninguém perguntou) se sentiu bastante acolhido e aproveitou a oportunidade, afinal "exame nunca é demais". "O convênio está pagando mesmo". "Esse hospital é bom".

Coitado de quem pensa assim.
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