Thread by @josenalencar

Gutierrez é um respeitado médico especialista. Se vangloria da sua capacidade diagnóstica e de suas decisões terapêuticas satisfatórias.

Em 2020, ele achou racional prescrever cloroquina. Em 2021, faz campanha contra a vacinação.

Segue o fio para entender.

No primeiro atendimento do dia, Gutierrez atende um resfriado comum. Com anos de atuação, veio a constatação que muitos pacientes exigem remédios para “justificar a consulta”.

O resfriado é uma doença auto-limitada: todos os pacientes melhorarão um dia ou outro.

Quando o paciente melhora, Gutierrez recebe elogios pela sua receita “diferenciada” -um kit de vitaminas e outras medidas ineficazes.

Gutierrez esquece do poder que a história natural da doença tem nesse caso - se o paciente já iria se curar, como afirmar que ele impactou nisso?

Quando chega ao Hospital, para discutir casos com os Residentes, Gutierrez demonstra seu conhecimento com os exames corretos para a doença correta na ponta da língua.

O que Gutierrez não faz é avaliar se o exame tem resultado verdadeiro ou falso.

Gutierrez engatinha na interpretação de exames: ele só sabe indicar, e sabe o que é positivo e negativo, mas não conhece os falsos. Gutierrez nunca ouviu falar de raciocínio probabilístico, bayesiano.

Ele superestima todos os exames que avalia durante toda a sua vida.

Mas os seus pacientes e residentes não percebem isso. Ao superestimar o resultado de um exame, Gutierrez dá vários diagnósticos falso-positivos (ele diz que a doença está lá baseada no exame, mas, na verdade, a doença não existe).

Como não existe, a pessoa não morrerá por ela.

E como a pessoa não morrerá por ela e a maioria das doenças tratadas por Gutierrez são auto-limitadas, o desfecho pode ser apenas um:
- O sucesso. Uma hora a doença passa.
Residentes adoram.

Esse sucesso ilusório (uma hora a doença passaria) aumenta sua fama e infla seu ego.

Mesmo que a terapia definida pelo Dr. Gutierrez seja danosa ao paciente, ela é envolta por boas intenções: o dano é uma “ferida de batalha”, o importante é que estamos lutando (ou morreu lutando).

Para a nossa sociedade, boas intenções importam mais que o resultado, vocês sabem.

Gutierrez tem cabelos brancos e ostenta, com orgulho, o brasão de sua universidade (aquela que fez há 40 anos, quando não existia tratamento para infarto).

O que ele não sabe é que, pela natureza do seu trabalho, ele foi privado de revisar suas próprias atitudes.

Atuando defensivamente (como foi ensinado pelos próprios pacientes e pelos hospitais), Gutierrez é, na verdade, um vendedor de doenças e de terapias ilusórias, não de saúde.

Em 2020, seu kit de medidas ineficazes mudou. Ele não fez por mal. É a Medicina que ele conhece.

“Temos que fazer tudo pelo paciente”, dizia ele. Você lembra.
“A pandemia é uma guerra, não há tempo para estudos científicos”.
A prática transformou esse médico bem formado em um técnico. E ele não percebeu que Cloroquina/Ivermectina nasceram de fraudes. Cachorro não vira gato.

Confrontado por colegas, Gutierrez se sentiu ferido. “Ora, mas quem é você? Eu tenho 40 anos de Medicina! Eu já curei vários pacientes!” (você viu que, na verdade, não).

Voltando pra casa, ele sempre ouve na rádio leigos discutindo uma suposta autonomia para iludir pacientes.

Ao se deparar com a ideia da Medicina Baseada em Evidências (uma prática que nem existia quando fez faculdade), Gutierrez se sente ferido.
Essa ciência é simplesmente o oposto de tudo o que fez sua fama e patrimônio. A MBE ensina o médico a diagnosticar e tratar corretamente.

Um certo dia, Doutor Gutierrez grava um vídeo para demonstrar sua indignação e esse vídeo viraliza entre os ouvintes da mesma rádio que ele ouve. A evolução disso: entrevistas nessa rádio; mais vídeos, agora no Telegram.

Consultas a preço caro para quem exige ser enganado.

Gutierrez percebeu que conseguiu dar a volta por cima. Agora ele possui uma espécie de fã clube. Tudo bem que esse fã clube fala em reptilianos, essa parte ele releva.

Pra não perder o fã clube, e também porque é isso que rola em sua bolha, Gutierrez virou anti-vacina em 2021.

Gutierrez tem cabelos brancos, formou em uma universidade de elite, possui consultório luxuoso e de sucesso, dá entrevistas com frequência.

Só que é um médico “leigo”. Ele ilude pacientes e a si mesmo. Ele é apenas a evolução natural do médico que não conhece MBE.

PS: qualquer um pode ser o Dr. Gutierrez. Conhecer MBE não é garantia que isso não ocorrerá, apenas reduz a probabilidade.
A prática é dura, a rotina, muitas vezes, é suja. É natural do ser humano relaxar, o pensamento “rápido” descrito por Kahneman é mais confortável.