Gostei muito de ouvir o @historiaFM com o Icles e o @rianhez sobre Holodomor. Por conta dele, fui ver qual a cifra mais aceita de mortos pela fome na ex-URSS: 3,5 milhões.
Agora multiplica isso por 3.
Esse número é o número de mortos na Índia, entre 1876-1879, nas grandes fomes que atingiram o país. Segundo o historiador Mike Davis, em torno de 10,9 milhões de indianos podem ter morrido nessa fome (ainda que estimativas mais conservadoras falem em "apenas" 6 milhões).
Sem dúvida os horrores do Holomodor são conhecidos mundialmente. Uma intensa máquina de propaganda divulgou e divulga a fome como crime contra a humanidade por parte do governo soviético.
Mas e as fomes da Índia, por que não recebem o mesmo tratamento?
O @rianhez dá uma pista: discutir com base na intencionalidade. Os agentes queriam mesmo matar deliberadamente de fome uma determinada população? Ou foi pura incompetência movida por ideologia? A intenção altera a gravidade do crime?
Bem, vamos voltar pra Índia.
Eu já falei em outro momento que um dos feitos dos ingleses na Índia, além de possibilitar a disseminação do cólera, foi acabar com reservas de água recolhida das chuvas, os "baoli".
Disso, as secas inclementes que atingiram regiões indianas tornaram-se mais graves e a perspectiva de fome era concreta por um simples motivo: mesmo com colheitas ruins, a Inglaterra não iria diminuir a exportação de trigo e grãos indianos para a Europa.
Além disso, a Inglaterra tinha como meta o aumento da exportação de algodão indiano, um cultivo que desgasta o solo rapidamente e que ia solapando os cultivos de subsistência dos camponeses indianos.
Mas caso você não esteja convencido da intencionalidade dos ingleses na morte de 10 milhões de indianos em três anos, deixem-me apresentar Sir Richard Temple, governador da província de Bombay (atual Mumbai).
Nessa época, a Índia estava sob o governo do Raj, cujo vice-rei local era Lorde Lytton, político conservador - apadrinhado por Benjamin Disraeli e um ardente defensor do darwinismo social. E sua tarefa era bastante infame: diminuir os gastos do Império na Índia.
Aí é que Temple entrou, pois Bombay estava sob forte seca em 1876. E ele teve uma ideia que faria corar o mais ardoroso nazista: usar os indianos de cobaia para saber qual o mínimo de comida que alguém precisava comer para poder trabalhar.
A "ração humana" de Temple era secundada por preceitos liberais do século XIX, inspirados especialmente em Jeremy Bentham e nas leituras do utilitarismo que o Partido Conservador fazia. Mas, a verdade é que sua ração nada tinha de científica.
Todo trabalhador nos campos de refugiados britânicos recebia a ração diária de arroz (pouco menos de meio quilo), condimentos e retalhos de carne. No total, cerca de 1.627 calorias diárias.
Como comparação, a ração humana dos prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha nazista, era de 1.750 calorias diárias (isso em 1944).
Os médicos britânicos destacavam que, naquelas condições, homens adultos estavam morrendo pesando cerca de 28 quilos, com lesões intestinais decorrentes da fome. Em um campo de trabalho em Madras, 94% da mortalidade era decorrente da fome.
Aí entram dois aspectos: para poderem comer a ração de Temple (ou o "salário Temple"), os sujeitos deveriam entrar em campos de trabalho e provarem ser completamente despossuídos. Não podiam ter qualquer terra, ou renda.
Essas pessoas só ganhariam sua ração se trabalhassem nos campos, que mais eram campos de trabalho forçado. Temple era muito claro quando dizia que a ração tinha que ser o mínimo possível para não "acostumar os indianos a receberem sem o equivalente do seu trabalho".
O problema, contudo, como alguns médicos britânicos destacaram é que quem chegava nesses campos, comendo a ração que comiam, não estava apto ao trabalho. Mas a prática permaneceu sendo considerada por Temple um grande sucesso - em 1878 ele declarou que a fome estava sob controle.
Mas esse é só um lado da intencionalidade. Há outro, talvez muito mais perverso e tão próximo da Alemanha nazista que deveria constranger a rainha Elizabeth.
Lembram que a ração tinha proteína animal? Na maioria dos casos, peixe. Mas na ausência de peixe, os ingleses usavam restos de carne de gado. Como a imensa maioria dos indianos era hindu, a carne não era comida, restando somente o arroz como ração.
Por conta disso, em 1877, durante a grande fome, Temple retirou a proteína animal da dieta dos campos de Bombay e Madras.
Algo bem parecido com que os nazistas fizeram com os judeus na Shoah, dando a eles carne de porco nos campos de concentração.
Para se ter uma ideia do impacto demográfico, em Madras calcula-se que 25% da população adulta morreu entre 1876-1879, pela fome e por doenças relacionadas. Mas os relatórios de Temple só falavam no sucesso britânico no controle da fome.
E não é que faltassem informações, pois elas chegaram à coroa britânica por meio de médicos sanitaristas que, horrorizados com a política de Temple, alertavam para a fome generalizada. Mandavam fotos, escreviam cartas, enviavam relatórios sobre peso, autópsias etc.
O que a coroa fez com esse material? Absolutamente nada.
Bem, eles mantiveram os impostos altos sobre os grãos indianos e garantiram que as exportações continuassem abastecendo o mercado europeu. Em todas as fomes, não houve nenhuma redução na exportação de trigo da Índia.
Para botar mais insulto na injúria, no ano de 1880, em vias de se aposentar, Temple recebeu uma estátua em tamanho natural de mármore, que até hoje encontra-se na Índia, disposta em museu e tudo.
Quando os relatos dos horrores da fome vieram à público (no caso, o público britânico), houve muito horror. Mas prontamente a máquina de propaganda do Raj funcionou, convencendo parlamentares e donos de jornais de que os ingleses estavam conseguindo mitigar a fome indiana.
Bem, não preciso dizer que entre 1896 e 1902, uma nova fome terrível atingiu a Índia, praticamente dobrando o número de mortos (segundo uma estimativa da The Lancet, cerca de 19 milhões de indianos morreram de fome e doenças relacionadas nesse período).
Tem aí a curiosa coincidência que mais uma vez o governador indiano dessa época era um político conservador. No caso, lorde Curzon, que se tornou protetor e sogro de Oswald Mosley, fundador do Partido Fascista Britânico. Mas isso é outra história (ou não).
Em 1896, o governo britânico lamentava que os povos das províncias centrais se recusavam a trabalhar nos campos em troca de comida. Entre 96 e 97, cerca de 1 milhão de indianos morreram. Esses números aumentaram nos anos seguintes, chegando ao seu ápice em 1902.
Lorde Curzon, contudo, ganhou destaque pela resolução do "problema". Se tornou um dos principais políticos britânicos na Primeira Guerra Mundial e um dos principais líderes do Partido Conservador na Inglaterra - o mesmo partido de Margareth Thatcher e de Boris Johnson.
Mas e a intencionalidade? Dá para provar que se queria matar indianos de fome deliberadamente? Bem, há algumas citações interessantes. Temple, por exemplo, admitia que na seca de 1876-1878 quis livrar-se da fama de perdulário, por conta dos seus gastos "extravagantes" para...
...poupar os indianos da fome (uma acusação comum da revista The Economist).
Lorde Curzon, por sua vez, afirmava que a Índia sob seu governo vivia a era mais próspera do subcontinente, recusando-se a reconhecer qualquer responsabilidade nos milhões de mortos.
Via de regra, os administradores britânicos, não obstante a morte de milhões de indianos (uma estimativa do período colonial inteiro calcula algo em torno de 55 milhões de mortes de fome), achavam que estavam fazendo o bem, trazendo a civilização para a Índia.
Poucos foram os políticos como Sir Winston Churchill, que conseguia ser tão franco sobre as ações britânicas na Índia.
Churchill, convém lembrar, ele também um político conservador britânico.
Diante da fome de Bengala de 1943 (a data é importante porque, bem, os britânicos produziram outras dessas), Churchill afirmou que a fome era culpa dos próprios indianos, "um povo selvagem" e que se reproduzia "como coelhos".
A fome de Bengala de 1943 matou entre 1.5 milhão a 3.5 milhões de indianos (estimativa semelhante a do Holodomor). Os números são imprecisos, mas não resta dúvida que as políticas imperiais desabasteceram a região de Bengala deliberadamente.
Não restam dúvidas entre os historiadores de que as fomes na Índia foram marcadas pela agência política dos administradores imperiais britânicos. Fenômenos de monções ocasionados pelo El Nino, ainda que cruciais, só fazem sentido à luz da ação humana.
Não tenho dúvidas, contudo, que o debate sobre intencionalidade continua. Mas aí, algumas coisas precisam ser ditas:
1) quem compara o Holodomor com o Holocausto não comenta absolutamente nada sobre os Holocaustos Coloniais dos britânicos. Sir Richard Temple e Heinrich Himmler são quase almas gêmeas, convenhamos.
2) quem pede a proibição do comunismo e dos partidos socialistas e comunistas, vai pedir também o fim dos partidos conservadores? Movimentos como MBL e Livres vão passar a criticar figuras como Churchill?
3) quem está divulgando os crimes coloniais que ingleses e outros povos europeus cometeram, matando milhões de fome deliberadamente? E por que não tem mais gente divulgando esses crimes?
Não sei a resposta para essa pergunta, mas acho que vale uma indagação: muito se sabe sobre os horrores de Hitler e Stalin.
Mas quantos de nós sabemos quem era Sir Richard Temple?
Valeu pra quem aguentou até o fim - sim, acabou!
Principal fonte aqui é o livro do Mike Davis, citado acima. "Holocaustos coloniais", galera. Procurem essa jóia.
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Prefiro pensar que o Glenn tá perdido nesse debate. Está usando um parâmetro americano de liberdade de expressão para países, como o Brasil, que passaram por ditaduras que acabaram com essa liberdade.
Todo país que teve o infortúnio de ter um "regime change" por conta das ações da CIA perdeu sua liberdade de expressão como direito universal e absoluto.
Por conta disso, quando alguém vem com esse papo, bem...a gente desconfia.
Que ele queira insistir nisso, tudo bem. Acho que é a posição política dele e, sinceramente, acho equivocada. Mas entendo.
O único toque que eu daria é que para o Brasil, a liberdade de expressão foi violada por um regime apoiado pelos EUA.
Uma leitura importante e necessária sobre o golpe inclusive é entender ele como reação a esse aumento de greves num contexto em que a economia já não ia tão bem.
Por isso também a centralidade da Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência e tantas ofensivas.
Ok, finalmente assistimos o Marighella do Wagner Moura - em duas partes e com agradecimento especial a @lukissima , que deu todo caminho da roça pra gente.
E assim: o filme é bom. Não é o melhor filme sobre ditadura que já vi, mas tem muitos méritos.
Tipo, o Bruno Gagliasso, como o delegado Lúcio, é bem interessante. É pra ser o Fleury, mas (ponto positivo), não é o Fleury. Creio que é por motivos de não dar palco pra filho da puta.
E também porque o Fleury do Cássio Gabus Mendes é imbatível.
O Seu Jorge não convence lá muito na parte dramática, mas nas cenas de alívio cômico, ele é bom mesmo.
Gostei do pastor Henrique Vieira e acho que o personagem dele reabilita os dominicanos - algo que o livro do @mariomagalhaes_ já havia feito, com muita justiça.
Hoje discuti Ranajit Guha com os alunos. Em dado momento, a discussão sobre persuasão e coerção entrou na roda.
Afirmei que numa sociedade em que o racismo é estrutural, precisamos entender que o espaço da persuasão é pequeno, minúsculo. Que o que pauta as relações sociais...
... é a coerção, a violência. Ela não é só a violência física, claro. Mas ela é a violência física. A sociedade em que o linchamento de jovens negros é um crime "normalizado" não precisa de uma elite muito sofisticada na persuasão.
Quando ela tenta persuadir, de fato, mais parece coerção - como um certo pasquim, que vive dando palanque para racista e depois, quando acusado, diz que não é racista (pois até tem repórteres negros, veja você).
Espancaram, torturram e mataram um trabalhador negro, congolês, que exigia seus direitos.
A gente deveria estar enojado e puto.
E sempre bom lembrar: umas duas semanas atrás, um punhado de maluco veio com um papo de “racismo segundo a definição clássica, do senso comum e do bom senso, registrada em dicionários..."
Mas nada falam da persistência de linchamentos contra negros na sociedade brasileira.
Por que não falam? Por que silenciam sobre isso, que é fenômeno social notório, reconhecido dentro e fora da academia?
Não sei. Mas é bom lembrar desse projeto, de falar de racismo a partir do senso comum. Porque é justamente no senso comum que Moise foi assassinado.
Que fascinante o texto da nova colunista da Falha, dizendo que questionar o "identitarismo" não é a mesma coisa que relativizar o holocausto porque o segundo é um fato e o primeiro é um conceito.
Não conheço a autora, mas ela tá de parabéns pela coragem em expor sua ignorância.
Eu, por exemplo, sou profundamente ignorante em física. Termodinâmica, elétrica, mecânica... Nem sei como terminei o Ensino Médio.
Aí imagina, eu com todo respeito esse conhecimento que ignoro, ganhar um espaço no jornal para escrever sobre, sei lá, construção de pontes.
Para isso, eu dou uma olhadela rápida no Google e pronto. Vou lá, escrevo minha coluna dizendo qual o melhor método para produzir pontes. Os especialistas vão rir de mim, mas gente tão ignorante quanto eu vai poder me usar como autoridade.