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Roseta @revistaroseta
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Todo mundo sabe que o “você” foi o que sobrou do pronome de tratamento “vossa mercê”. O que pouca gente sabe é que a entrada do “você” no português contribuiu para que hj nós falemos “nós pega” (e, não, isso não vai destruir o português!)

(thread)

Antes, vamos lembrar que a gente aprende na escola que são 6 as possíveis flexões de pessoa para o verbo:

Eu quero
Tu queres
Ele quer
Nós queremos
Vós quereis
Eles querem

Ou seja: eu consigo saber o sujeito de um verbo apenas pela sua flexão!
Como pronome de tratamento, o “vossa mercê” era usado fazendo concordância com o verbo em terceira pessoa, "quer". Ou seja, falava-se “vossa mercê quer água?”, e não “vossa mercê queres água?”
É mais ou menos como no inglês. Quem estudou a língua sabe que se você usar pronome de tratamento "majesty" com a rainha, terá que usar a terceira pessoa dizer “Does your majesty want…”, e não "do your majesty want...". Mas voltemos ao português brasileiro...
Num processo que os linguistas chamam de “gramaticalização”, o " vossa mercê" virou apenas um pronome de segunda pessoa, "você". Ele passou a ser equivalente ao “tu”, mas manteve a concordância com o verbo de terceira pessoa. Vossa mercê quer >>>>> você quer
No processo, conforme novas gerações foram nascendo, elas passaram a entender o quadro de verbos do português da seguinte maneira:

Eu quero
Você/tu quer
Ele quer
Nós queremos
Vocês querem
Eles querem

Sumiu a distinção entre você e ele, e entre “vocês” e “eles”!
Se eu falo "quer", não sei se é "você" ou "ele" o sujeito! Para os falantes de português que foram nascendo, as flexões do verbo deixaram de ser informativas. Ora, de seis formas, eu passei a ter apenas 4! Quer bagunçar mais o coreto? Pois temos o “a gente”.
O “a gente”, como sabemos, TAMBÉM faz concordância com a terceira pessoa. O quadro de flexão verbal fica assim:

Eu quero
Você/tu quer
Ele quer
A gente quer
Vocês querem
Eles querem

Ou seja, reduzimos o quadro de 6 formas de verbo para 3!
Ao mesmo tempo em que o Português do Brasil vai perdendo essas flexões no verbo, ele compensa diminuindo o número de sujeitos nulos! Em vez de falar "quero", eu digo "eu quero". Em vez de "quer", eu digo "você quer".
Afinal, se o verbo não me diz mais que é o sujeito, eu tenho que ser explícito. De fato, muitos trabalhos que analisaram textos brasileiros do último século viram uma diminuição do número de sujeito nulo!
Percebam como isso é lindo: significa que todo o sistema da língua se rearranjando para acomodar o “você”!! E como esse sistema está se rearranjando? Bom, se a morfologia verbal agora é acessória, é possível que a estrutura da língua seja a seguinte:
Eu quero
Você quer
Ele quer
Nós/a gente quer
Vocês quer
Eles quer

Isso é ruim? Significa que o português, se continuar assim, vai ser uma língua "mais pobre"? Bem, só se você achar que o francês ou o inglês são línguas pobres...
Essa história do português é bem parecida com a do francês. O francês, que é uma língua que ninguém diz que é errada ou feia, também sofreu mudanças no seu sistema de flexão do verbo.
Os franceses escrevem assim:

Je mange (eu como)
Tu manges (tu comes)
Ils mangent (eles comem)

Só que mange, manges e mangent têm a mesma pronúncia!! A língua manteve fossilizada na escrita uma distinção que existia no latim, mas não ocorre na língua falada.
Tudo isso é só para exemplificar que as mudanças linguísticas não são aleatórias ou frutos de preguiça ou ignorância. Elas seguem um padrão previsto no próprio sistema da língua! A gente mudou uma engrenagem (um pronome novo, o "você"), e isso reconfigura todo o maquinário!
Os linguistas estudam essas coisas para poder entender, dentre outras coisas, de onde vem esse sistema tão bonito e que se auto-organiza. Se nenhuma mudança é aleatória, de onde vêm essas regras? E como fatores externos à língua pressionam essas mudanças?
E antes que comecem a grita, é claro que os linguistas querem que todos aprendam a norma padrão do português. Afinal, ela é usada em diversas situações, e mesmo aprender formas quase em extinção, como "vós falaríeis",
nos dá acesso aos textos que fazem parte da história da nossa língua!
Só se lembrem que o ensino dessas formas se justifica pelo valor social atribuído a elas, e não porque elas são "melhores" de um ponto de vista linguístico ou comunicativo, pois não o são!
A thread está longa, então vamos parar por aqui. Deem uma olhada no site da revista para mais textos =D

Se você é o tipo de pessoa que se recusa a falar "a gente", temos um texto para você... roseta.org.br/pt/2018/05/16/…
PS: se alguém aí é aluno de Letras ou Linguística, perceba que tudo isso explica a noção de valor em Saussure: um signo (o morfema verbal de pessoa) só tem valor na medida em que ele se opõe a outros ;)
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