, 25 tweets, 4 min read
COMPLEXO DE CHERNOBYL: A USP E O PREÇO DA MENTIRA.

1. Há 33 anos, parte da Europa ficou ameaçada de se tornar inabitável após o acidente nuclear na Usina de Chernobyl. O episódio de 25 de abril de 1986, região da Ucrânia, foi retratado na série “Chernobyl e o preço da mentira".
2. A série mostra o que acontece em um sistema hierarquizado quando opiniões técnicas contrariam interesses políticos.

De um lado, os membros do Partido Comunista, representados por Boris Scherbina, então Vice-Primeiro Ministro da União Soviética.
3. Do outro, os técnicos liderados por Valery Legasov, o físico nuclear responsável por avaliar os danos do acidente.

Segundo Scherbina, o acidente havia provocado apenas uma radiação de 3,6 Roentgen (o equivalente a um raio-X).
4. Não havia, portanto, motivos para se preocupar: a situação era estável e estava sob controle. Ouvindo a narrativa, Legasov não se conteve:

“Não! Não é verdade. A questão é que a leitura máxima do dosador é de 3,6 Roentgen. Pelo que vi, este número deve ser muito maior...”
5. Diante do impasse, o que fizeram os membros do Partido Comunista — os que tomariam as decisões? Confiaram nos especialistas da reunião? Buscaram mais informações? Tentaram compreender o ocorrido?

Não! Pelo contrário, acreditaram na versão que era conveniente ao Partido.
6. O tempo mostrou a verdade. A radioatividade de Chernobyl não era 3,6, mas 15.000 Roentgen, o equivalente a 400 bombas de Hiroshima e Nagasaki juntas. Uma fumaça de Iodo-131 e Césio-137 se espalhou pelo vento.
7. Menos de dois dias depois do acidente, a fumaça radioativa havia chegado à Suécia, a 1.100 quilômetros do local da explosão, na cidade em Pripyat.

Chernobyl foi o maior acidente nuclear da história, classificado como um evento de grau 7 (a classificação máxima).
8. Segundo dados da URSS, apenas 31
pessoas morreram no acidente, mas a ONU estimou em 2005 que mais de 4 mil pessoas morreram pela exposição à radiação.

A decisão das autoridades de minimizar o acontecido e não avisar a população para se autoproteger maximizou a contaminação.
9. Apesar de Chernobyl ter se passado em 1986, a mentalidade está presente até hoje. Inclusive na USP, a principal universidade do país.

A Universidade de Leiden, na Holanda, produz anualmente um ranking com as instituições que mais produzem pesquisa acadêmica.
10. Segundo esse ranking, de 973 universidades analisadas, a USP foi a 8ª que mais produziu artigos. Foram 16.846 artigos entre 2014 e 2017.

Em meio a críticas recentes, a notícia era boa o suficiente para o alto escalão da USP comemorar.
11. O próprio Jornal da USP fez uma matéria com o título: “Ranking que avalia produção científica classifica a USP como a 8ª melhor do mundo.”
12. Como recentemente passei a compor o conselho consultivo da USP, senti-me como Legasov e os técnicos vendo os camaradas soviéticos comemorando o fato de a radiação ser supostamente 3,6 Roentgen. Trata-se de um autoengano.
13. Assim como ele, infelizmente tenho que dizer que não há praticamente motivo algum para se comemorar.

O Ranking Leiden classifica as universidades em todo o mundo pelo volume de publicações acadêmicas.
14. Como a USP está entre as maiores universidades do mundo em número de professores e alunos, é natural que tenha mais quantidade de pesquisas do que as outras.
15. Seria a mesma coisa que dizer que somos 4x mais prósperos que a Suécia, já que temos um PIB de 2 trilhões de dólares, enquanto eles possuem um PIB de US$ 500 bilhões.

Quem utiliza essa lógica ignora que o fato de que temos 210 milhões de pessoas e eles, apenas 10 milhões.
16. Não podemos comparar a USP, que tem 98 mil alunos, com Stanford, que possui 16 mil.

Temos que avaliar a qualidade da pesquisa, e não apenas a quantidade. Vendo o ranking Leiden, me perguntei: qual a porcentagem das pesquisas está entre as mais relevantes?
17. E quando se faz essa análise, dos mais de 16 mil artigos, apenas 6,2% estão entre os 10% melhores em suas áreas. Utilizando esse critério, a USP cai para a 775ª colocada.

Conclusão: a USP produz muitos artigos, mas com pouco impacto no cenário internacional.
18. Claro que - assim como Legasov - tentei contra-argumentar com aqueles que repassaram a notícia de que a USP era a 8ª melhor do mundo em pesquisa.

Mas o que membros do alto escalão fizeram quando viram o Ranking Leiden? Questionaram? Não. Fizeram críticas à metodologia? Não!
19. Pelo contrário, fizeram como os soviéticos em
Chernobyl: aplaudiram a verdade que lhes convinha e fizeram questão de divulgar a informação que lhes favorecia.

Não me entendam mal. Não quero diminuir a USP, que é uma universidade respeitada e faz parte da história do país...
20. Pelo contrário, o objetivo é fazê-la melhorar cada vez mais.

Como deputado, cuja principal bandeira é a educação, trabalho diariamente para melhorá-la em todo o país, sobretudo no ensino superior. Como membro
do conselho da USP, quero vê-la ao lado com as melhores do mundo.
21. Porém, como vamos melhorar se aqueles que deveriam reavaliar constantemente os rumos da universidade simplesmente distorcem a realidade?

Como vamos melhorar se buscamos apenas mentiras confortantes e escondemos as verdades inconvenientes?
22. Com certeza não é isso que se faz em Harvard, Oxford, Yale e tantas outras instituições de excelência.

No auge de Guerra Fria, os soviéticos negavam qualquer narrativa que fosse enfraquecê-los para não revelar fraqueza ao Ocidente.
23. Mas em Chernobyl e na vida real, a mentira tem seu preço, e as coisas só pioram quando escondemos os fatos.
24. No último episódio da série, Legasov pergunta aos presentes no julgamento final: “Qual o preço da mentira? Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Um dia, esta conta deverá ser paga”.
25. A verdade não pode ser apenas um mero detalhe. Uma cultura de mentiras deixa um rastro de destruição. A USP precisa se livrar do seu complexo de Chernobyl.

(Artigo meu, publicado no @BrazilJournal)
Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh.

Enjoying this thread?

Keep Current with Daniel José

Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

Twitter may remove this content at anytime, convert it as a PDF, save and print for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video

1) Follow Thread Reader App on Twitter so you can easily mention us!

2) Go to a Twitter thread (series of Tweets by the same owner) and mention us with a keyword "unroll" @threadreaderapp unroll

You can practice here first or read more on our help page!

Follow Us on Twitter!

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just three indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3.00/month or $30.00/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!