A política de abstinência sexual anunciada pelo governo Bolsonaro me lembrou daquela que vi ser adotada por uma missão religiosa no interior da África Subsaariana, onde eu morei por um ano, em 2006. Segue a thread:
Eu morei em Moçambique como professora voluntária, dando aulas de português numa escola pública, localizada dentro de uma missão católica (no interior da província de Sofala). O lugar era tão isolado que na época não tinha energia elétrica, nem referência no Google Maps.
Os religiosos promoviam a abstinência sexual e eram contra o preservativo, alegando que estimulava a promiscuidade. Em palestra aos alunos, uma religiosa (brasileira, por sinal), disse que a camisinha causava Aids: "Em Uganda, distribuíram preservativos e toda a aldeia morreu!"
Na 8a classe, onde eu dava aula, a idade média dos alunos era de 18 anos. Na catequese, que eram obrigados a frequentar, todos juravam que faziam abstinência sexual. Na vida real, seguiam transando sem camisinha. Cerca de 10 alunas foram expulsas ao longo do ano por engravidarem
Em 2016, Moçambique registrava então 270 mortes por dia em consequência do vírus HIV. O governo distribuía camisinhas, mas os religiosos da missão onde eu morava preferiam não distribuí-las.
Preocupados com a situação, criamos na escola uma campanha para discutir educação sexual e prevenção ao HIV. Nas atividades, pedíamos que os alunos escrevessem anonimamente suas dúvidas, e depois juntos tentávamos respondê-las. Aos interessados, também distribuíamos preservativo
Descobrimos que eles tinham dúvidas básicas. "É verdade que se colocar sete preservativos protege mais?" A falta de educação sexual também favorecia mitos e teorias da conspiração. Era corrente a ideia de que os EUA tinham implantado o HIV no preservativo para matar os africanos
Quando o padre da missão descobriu nosso trabalho de conscientização sobre métodos contraceptivos e de prevenção ao HIV, ele transformou o tema em seu sermão dominical - que todos os alunos eram obrigados a assistir. Alertou que havia "falsos profetas" distribuindo preservativos.
Na mesma missão, também trabalhava um religioso que eu e outros professores descobrimos que era pedófilo. Encontramos mais de cem fotos de alunas seminuas no seu computador. Ele seguiu em cargo de direção educativa por mais um ano depois de denunciarmos o caso.
Impactada pela experiência, segui estudando o tema em um projeto de mestrado. Na minha dissertação (do PPG em Sociologia da UFRGS), usei o conceito de racionalidade cínica para analisar as relações que imperavam naquela missão religiosa, em nome de ideais aparentemente tão nobres
Minha dissertação, "Reduções do século XXI: O papel de uma Missão católica na reprodução de relações coloniais tardias – o caso de Mangunde, Moçambique", foi concluída em 2013. Não imaginava que ela seria tão relevante para entender o Brasil de 2020. lume.ufrgs.br/bitstream/hand…
Aliás, recomendo à ministra Damares uma visita à Africa Subsaariana para compreender como podem ser perigosos os efeitos da política de abstinência sexual no combate à gravidez precoce e à Aids.
(Fim da thread)
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Ops, corrigindo ali em cima - O ano correto é 2006, não 2016: "Em 2006, Moçambique registrava então 270 mortes por dia em consequência do vírus HIV. O governo distribuía camisinhas, mas os religiosos da missão onde eu morava preferiam não distribuí-las."
