O mais curioso no que diz respeito ao Liberalismo é a própria noção a-histórica, idealista e romântica que muitos liberais têm do seu movimento, o que aparece na forma de uma quimera maniqueísta, onde tudo que é ruim não é liberal e tudo que é bom é. Vamos lá (1/24).
Isso aparece na apresentação do Liberalismo como mito, ora ligado ao Iluminismo, ora retrocedido ao Mundo Antigo, onde toda e qualquer reivindicação por Liberdade é apontada como a presença objetiva de um Liberalismo onipresente (2/24).
Com efeito, não é. O adjetivo liberal, quando se referia às artes liberais tinha outro significado. Em Shakespeare, liberal tem outro significado. O adjetivo ali, contudo, era relativo à ideia mais geral de Liberdade não a uma doutrina chamada Liberalismo (3/24).
Há quem argumente que Adam Smith é quem começa a dar um sentido propriamente político à Liberal, embora ele próprio esteja falando da ideia moderna de Liberdade, o que pode ser as sementes de um Liberalismo, não a origem do Liberalismo theatlantic.com/politics/archi… (4/24).
Os estudiosos divergem se o termo Liberalismo surgiu na língua inglesa nos anos 1820 (como no artigo acima) ou em 1815 como diria Emil Kirchner. Onde se falará em liberais pela primeira vez é na Espanha dos anos 1810 e a primeira revolução liberal é a portuguesa de 1820 (5/24).
O que havia na Grã Bretanha na década de 1810 era o Partido Whig, sendo o termo o diminutivo de "whiggmore", algo como boiadeiro, uma denominação pejorativa dada aos inimigos políticos do Kirk Party, a qual depois foi assumida (6/24).
Entendam a coisa: o Partido Kirk (Partido da Igreja [escocesa]) era um partido presbiteriano escocês que se opunha à Igreja Anglicana ser encabeçada de forma centralizada pelo Rei e seus bispos (organização episcopal) no século 17 (7/24)
O Partido Kirk combateu ao lado de Cromwell contra a Coroa, depois caíram em desgraça e reaparecem em 1678 como Whig Party: um movimento de pequenos proprietários que impedem o restabelecimento da Coroa em torno do absolutismo e do Catolicismo Romano (8/24).
Desde então, com a chamada Revolução Gloriosa, o Reino Unido se organiza numa monarquia parlamentar comandada pela mesma família real, com alternância entre os dois partidos: o Tory (mais tarde Partido Conservador) e o Whig (mais tarde, só em 1851, Partido Liberal) (9/24).
Os Whigs eram liberais? Não! Eles eram um partido episcopal, escocês, defensor dos pequenos e médios proprietários (não apenas da aristocracia), do Parlamento dentro de uma monarquia constitucional, o alude a ideias Iluministas (10/24).
O contexto onde o Partido Whig nasce não é sinônimo de "liberal", uma vez que esse caldo inspirará ou mesmo resultará muitas outras tradições na Grã-Bretanha e no mundo, incluso aí o próprio liberalismo, socialismo e republicanismo (11/24).
Onde havia um proeminente Partido mais próximo AO QUE VEIO A SER o Liberalismo era nos Países Baixos dos tempos de Espinosa: o Partido dos Estados, que era antimonarquista e federalista, ligado aos LIBERTINOS,o campo progressista do protestantismo local (12/24).
O termo libertino era igualmente pejorativo, empregado por Calvino contra seus adversários na Reforma Protestante. Percebam: isso tem implicações religiosas, culturais e políticas diversas do que se pode dizer Liberalismo (13/24).
Os liberais só aparecem, de fato, em tentativas de reformas das decadentes coroas ibéricas no começo do século 19, mas também implicam numa tentativa de recolonização, vide o objetivo da Revolução Liberal do Porto ser o rebaixamento do Brasil à colônia de novo (14/24).
Na Grã-Bretanha, o Partido Whig passa a professar essas ideais, sendo o partido hegemônico do país no século 19, apesar de algumas vitórias dos tories; ele representava sempre as camadas não-aristocratas de proprietários, nunca os não-proprietários (15/24)
Por isso, surge um Partido Whig nos EUA em 1831, mas assim com sua contraparte britânica, ele se dissolve na década de 1850: na Grã-Bretanha na forma do Partido Liberal, nos EUA como Partido Republicano (16/24).
Os Whigs americanos tiveram um quadro ilustre: Abraham Lincoln, depois fundador do Partido Republicano e primeiro presidente pelo país. Algo surpreendente pelo que se tornaram os republicanos hoje (17/24)
A conversão do Partido Whig britânico em Liberal não aclamou as tensões internas: a ascensão de uma classe trabalhadora industrial, que não se via representada pelo partido, forçou, com alguma demora, o surgimento do Labour como partido socialista britânico (18/24)
Enquanto tudo isso acontece, o Brasil já tinha um Partido Liberal, assim denominado, em pleno ano de 1831 e este irá se alternar no poder com seu rival, o Partido Conservador (19/24).
Isto é, o Brasil tinha um movimento liberal mais distinto e delimitado que no Reino Unido e nos EUA: e veja, nada disso tinha *necessariamente* a ver com abolição da escravidão, sufrágio universal ou democracia de massas (20/24)
Detalhe importante, o movimento Whig no mundo de língua inglesa SEMPRE FOI mais do que o Liberalismo na sua ação, uma vez que ele sempre compreendeu camadas médias; o Liberalismo propriamente dito é uma ideia ibérica e por isso o Partido Brasileiro é anterior (21/24).
Também por isso que Lincoln fundou um partido chamado republicano e não liberal. Por isso, liberalismo expressa, nos EUA, uma ideia genérica de progressismo, diferentemente do que significa no Brasil, uma representação de certa fração da burguesia (22/24).
Ainda que no Reino Unido, o Liberalismo aluda a uma ideia de progressismo também, lá ele nunca conseguiu sair dos limites da lógica de propriedade privada capitalista e nunca, realmente, conseguiu defender os direitos dos trabalhadores (23/24).
Por isso os Liberais britânicos, apesar de aderirem a lógica de bem-estar social no Entreguerras (com os ilustres Beveridge e Keynes, considerados "socialistas" pelos liberais brasileiros), foram suplantados pelos trabalhistas (24/24).

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