Essa resposta é bastante simples. A maioria dos estudiosos do liberalismo dizem o mesmo: historicamente, a tradição liberal tem gente na direita e na esquerda.
Como o assunto tem sido muito discutido, explico o que digo num fio:
Basta ler bem pouco sobre história do liberalismo para constatar que os liberais tem facilidade para atuar na esquerda e direita.
Não estou falando de um momento histórico isolado, mas de uma história recheada. Há exemplos no Reino Unido, Brasil e EUA, nos séculos 19, 20 e 21.
O Partido Liberal britânico, cuja importância na formação do liberalismo dispensa apresentações, foi fundado em 1859 por três grupos que discutiam política no Reform Club, um clube de debates em Londres.
Esses três grupos eram conhecidos como Whigs, Radicals e Peelites.
Sendo bem superficial:
Os Whigs eram a ala mais reformista do establishment.
Os Radicals foram pioneiros do que hoje se chama de esquerda. Eram reformistas, progressistas e utilitaristas. A cor deles? Vermelho.
Os Peelites eram a facção mais pró-mercado do Partido Conservador.
Os 3 grupos eram ideologicamente diversos, mas defendiam vagamente a liberdade como um princípio fundamental (formulado de várias formas) e acreditavam num debate de ideias tolerante e racional como veículo do progresso humano. O próprio partido foi fundado num clube de debates!
Durante sua história, o Partido Liberal britânico jogou na direita e na esquerda em vários momentos. Abrigou imperialistas e anti-imperialistas.
Ajudou a ascensão trabalhista nos famosos acordos Lib-Lab e propôs a criação do NHS, mas se aliou aos conservadores noutros momentos.
Na coluna abaixo, conto um episódio que ilustra bem a diversidade do liberalismo: o debate Hayek x Beveridge.
Hayek dedicou "O Caminho da Servidão" a "socialistas de todos os partidos". Era uma indireta para William Beveridge, do Partido Liberal.
Beveridge tinha acabado de publicar, em pleno Reform Club, um famoso relatório que leva seu nome.
Ali estava o embrião do Estado de Bem-Estar Social e da NHS, o sistema de saúde universal deles, que inspirou o nosso. Poucos sabem, mas o liberal Beveridge é tipo um avô do SUS.
Hayek, que como bom liberal obviamente era sócio do Reform Club, respondeu com "O Caminho da Servidão".
Nada mais liberal do que um debate racional, pacífico e tolerante para discutir: será que a expansão do Estado por meio de políticas sociais pode servir à causa da liberdade?
A história do liberalismo é feita desse tipo de divergência.
O Partido Liberal brasileiro, no século 19, notoriamente liderou o movimento abolicionista. E, mesmo assim, uma observação mais atenta vai mostrar que o partido estava dividido e também abrigava escravistas.
Essa é uma constante na história do liberalismo.
Anísio Teixeira e Roberto Campos foram contemporâneos e liberais. Ambos foram amplamente influenciados pelo liberalismo americano do seu tempo, que por sua vez também é diverso. Raramente concordavam, o que é tipicamente liberal.
Saindo do campo político e indo para o ideológico, o livro "Liberalismo - Antigo e Moderno", do grande Merquior, mostrou bem como a tradição liberal formulou ideias de esquerda e direita ao longo da sua história.
Liberalismo tem Keynes e Rawls, mas também tem Mises e Hayek.
Por sinal, muito do que críticos como Domenico Losurdo escrevem é verdadeiro: o liberalismo tem uma ficha bem suja, como qualquer ideologia.
O que os críticos não comentam, porém, é a notável capacidade do liberalismo para mudar a si mesmo através do livre debate interno.
Mais do que isso: o liberalismo fornece ferramentas para a superação de erros passados. O escravista Thomas Jefferson defendia a mesma liberdade de consciência, imprensa e associação que, em poucas décadas, permitiu o sucesso dos abolicionistas, craques em gerir jornais e clubes.
Uma história parecida aparece em "Flores, Votos e Balas", excelente livro de Angela Alonso sobre o movimento abolicionista daqui. Mesmo antes de liderar o movimento, o Partido Liberal favoreceu o surgimento dele ao defender um espaço público mais aberto à liberdade de opinião.
A ideia de que o liberalismo é incompatível com a esquerda, por exemplo, é muito repetida por aí. Mas é uma tese ignorante, pura e simplesmente.
A diversidade interna da tradição liberal não se deu por acaso, mas por construção. Ela é o próprio liberalismo. Não é bug, é feature.
Essa diversidade não existe, ao mesmo não na mesma intensidade, no conservadorismo ou no socialismo. Ela permite que o liberalismo supere a concorrência em influência, resiliência, flexibilidade e perpetuação no tempo. Partidos e doutrinas valem menos que o indivíduo livre.
Respondendo à pergunta inicial para finalizar o fio:
Existe liberalismo de esquerda, direita e centro. Essa é uma afirmação banal e nada polêmica.
A diversidade interna é uma marca do liberalismo, que nunca se resumiu a mera receita de bolo sobre funções legítimas do Estado.
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Quem merece reconhecimento público pelo sucesso do Pix?
Eu já escrevi minha opinião: corpo de servidores do BC, vários diretores nas últimas 2 gestões, além dos presidentes Ilan e Campos Neto. Nada de Guedes.
Mas nunca expliquei meus motivos para escrever isso. Resumo num fio:
Por que ressaltar o corpo de servidores do Banco Central?
Porque é uma das instituições com mais técnicos qualificados dentre os vários braços do Estado brasileiro.
Isso dá consistência à atuação do BC mesmo com as mudanças de presidente e diretoria. E merece ser reconhecido.
O BC brasileiro tem um bom histórico quando o assunto é meios de pagamentos. Já me disseram que começou nos tempos de inflação, quando agilidade era crucial.
Mesmo anos antes do Pix, é notável trabalho do BC na popularização das maquininhas de cartão. Há uma certa tradição aí.
Sem exagero: desde que fui no Flow, recebi umas 100 mensagens de jovens (geralmente do Nordeste) que pensam em cursar a graduação em economia numa faculdade do eixo RJ-SP.
Dada a época e a quantidade de gente interessada, segue um fio sobre o tema, baseado na minha experiência.
Se mudar (ainda mais para SP) sendo muito jovem, sem ter amigos ou família na cidade de destino, é bem difícil. Pouquíssimos interessados pensam a sério sobre isso.
Conheci muita gente que se deu mal. Vi CDFs virando péssimos alunos, entrando em depressão, etc. É sério. Reflita.
Até pra facilitar a adaptação, conheça as faculdades que te interessam. Se informe cedo e muito.
Não importa qual a melhor entre Insper, FGV-SP, FGV-RJ, USP e PUC-Rio.
Dentre essas opções, o que importa para escolher uma é saber qual a melhor *para você*.
Por que eu estou otimista com a nova diretoria do Vasco?
Muitos torcedores de outros times se perguntam isso. Afinal, eu costumo ser bem cético com políticos e o Vasco tem os piores cartolas do país, uma política interna que faz a ALERJ parecer limpa.
Explico neste fio.
Antes de mais nada, é importante ressaltar que:
Eu não recebo 1 real do Vasco ou de qualquer pessoa ligada ao clube. Não tenho cargo. Nem chefe vascaíno eu tenho. Não vou auferir nenhuma vantagem pessoal com isso.
Dada a imagem da política vascaína, esse é um adendo importante.
Como argumento inicial, basta comparar o currículo dos presidentes no séc 21. Eurico, Dinamite e Campello não tinham experiência como grandes gestores no setor privado.
Jorge Salgado é uma referência do mercado financeiro nacional, vide matéria do Valor.
Volta e meia, ouço por aí um papo de que "o Sudeste sustenta o Nordeste" etc. Aconteceu hoje.
Sobre a origem da desigualdade regional no Brasil, recomendo o @thaleszp.
Um fator importante no séc 19 foi uma política fiscal que quebrou o Nordeste para sustentar o RJ. Segue o fio:
Na virada do século 18 para o 19, a desigualdade regional brasileira não existia como conhecemos.
O Nordeste era o maior fornecedor do algodão que chegava em Liverpool. Uma tal de Revolução Industrial acontecia por ali. Mas o setor quebrou nesta época, quando a demanda explodia.
De todos os grandes exportadores de algodão, nenhum país teve uma performance pior que a do Nordeste brasileiro naquela época.
Pouco a pouco, regiões como o Sul dos EUA ocuparam esse espaço. O Brasil conseguiu a proeza de perder o bonde da história. Como isso aconteceu?
O argumento de Silvio Almeida é ótimo na seguinte leitura: políticas que promovem desigualdade promovem racismo. Cabe discutir se toda austeridade fomenta desigualdade. O Real foi precedido por um pacote de austeridade. O Bolsa Familia ocorreu durante um ajuste fiscal. 1/5
No fim das contas, prefiro aproveitar o que considero melhor e mais correto no argumento dele - o antirracismo precisa ser incorporado na agenda econômica de quem pretende superar o probema. De um especialista em racismo, não espero ressalvas e nuances sobre política fiscal. 2/5
No fim, “austeridade é racista” ali significa “políticas anti-negro são racistas”. Se austeridade é anti-negro ou não, depende do significado que cada um dá à palavra. E eu duvido que Silvio e os economistas revoltados trabalhem com a mesma conceituação. 3/5
A @CNNBrasil tem defendido o suposto "Grande Debate", afirmando que é um modelo aclamado no exterior. Não é verdade.
Nos EUA, a própria CNN cancelou o programa por reconhecer que prejudicava o debate público.
A história é curiosa e ensina muito sobre a imprensa. Conto + no fio:
O "Crossfire" (Fogo Cruzado, o Grande Debate deles) foi um dos programas de maior sucesso da CNN por 22 anos.
O episódio mais famoso foi ao ar em 15 de outubro de 2004. É um dos momentos mais marcantes da TV dos EUA. Foi o início do fim para o Crossfire, cancelado em dezembro.
O responsável por cancelar o Crossfire foi Jon Stewart, esse do gif abaixo. Ele apresentava o Daily Show e foi pioneiro ao misturar comédia com noticiário político. O programa fazia tanto sucesso que era transmitido no Brasil. O modelo do Daily Show foi copiado em todo o mundo.