Há anos, estudo a redemocratização BR. E, baseado nisso, gostaria de levantar 4 razões que me levam a pensar que há não há base material para se repetir uma experiência de "frente ampla" nos mesmos moldes. Ou seja: não é só uma questão de vontade das partes. Desenvolvo no 🧵...
A "frente ampla" da redemocratização só foi possível pela junção de 4 fatores: 1) uma sociedade industrializada com sindicatos atuantes; 2) o catolicismo progressista como base ideológica; 3) o diálogo do MDB com o trabalhador urbano; 4) o socialismo de base do PT. Explico:
1) O Brasil se desindustrializou de modo muito acelerado desde a década de 1980. E isso é importante por...? Os sindicatos e as comunidades operárias dispunham de grande organização, inserção significativa na sociedade e capacidade de pressionar governos, empresas e partidos.
Desde então, as indústrias vem empregando cada vez menos, enquanto o setor de serviços cresce de forma descomunal. Mas, apesar de conseguir gerar empregos (em geral, de baixa remuneração), esse setor dificulta enormemente a organização institucional e social dos trabalhadores.
Greves como a dos metalúrgicos do ABC e dos trabalhadores rurais na década de 1980 foram fundamentais para pressionar a ditadura e toda a oposição da época. Infelizmente, hoje, os trabalhadores não tem força, organização, nem base material para repetir experiência semelhante.
2) Nunca nos recuperamos da perda da força e influência das Comunidades Eclesiais de Base. As CEB's e outros grupos baseados em um catolicismo popular e progressista cresceram nas décadas de 1970 e foram a base ideológica que conectou muitos atores e grupos da "frente ampla".
A partir de mudanças na Igreja Católica com João Paulo II, estes grupos progressistas perderam espaço institucional e influência social. As CEB's passaram a ter dificuldade de manter seus vínculos nas periferias. Tal vazio foi ocupado, por exemplo, pela Teologia da Prosperidade.
Enquanto as CEB's adotam um léxico político baseado em crescimento da comunidade, justiça social, combate a fome e caridade, as neopentecostais falam em crescimento profissional, prosperidade financeira, e defendem um senso coletivo estrito aos "irmãos e irmãs".
3) O MDB foi muita coisa, menos neoliberal. O MDB teve papel fundamental na organização da luta institucional contra a ditadura e foi efetivo em dialogar com o eleitorado mais pobre dos centros urbanos. Isso não seria possível com uma retórica neoliberal.
As eleições de 1974 contaram com o fato inédito da propaganda eleitoral na TV e o MDB soube aproveitar. Sua retórica ia no coração dos problemas dos trabalhadores/eleitores mais pobres dos centros urbanos. Paulo Torres, candidato derrotado pela ARENA no RJ, definiu bem a questão.
Assim, em 74, o MDB teve um triunfo eleitoral histórico, abalando as bases parlamentares da ditadura e escancarando a perda de popularidade da mesma. Na década de 80, já PMDB, muita coisa mudou no partido, mas ele nunca aderiu plenamente ao neoliberalismo, papel adotado pelo PFL.
A postura do PMDB permitia alianças pontuais com partidos de esquerda (PT/PDT), e com as demandas dos trabalhadores sindicalizados e das CEB's. Qual partido fora das esquerdas ocupa esse papel hoje? Nenhum. DEM, MDB, PSDB se aproximam muito mais do PFL do que do antigo MDB.
4) Não temos hoje um partido de esquerda capaz de organizar forças extraparlamentares nos mesmos moldes do PT da década de 1980. O PT esteve diretamente e organicamente relacionado com os sindicatos urbanos e rurais, MST, pastorais, CEB's, mov. negro, mov. feminista, etc.
Assim, o partido passou a conquistar um significativo eleitorado nos grandes centros urbanos, amalgamando votos de trabalhadores sindicalizados com um discurso voltado para a inclusão das periferias. Esse foi o contexto das vitórias em 1988, de Erundina em SP e Dutra em POA.
No presente, muitas coisas mudaram no PT e nas esquerdas em geral. Por exemplo, o PT passou/passa por um realinhamento eleitoral e sua base eleitoral desde 2006 passou a ser o trabalhador informal e muito pobre do interior do Nordeste. Mas, ao meu ver, há algo mais importante.
As esquerdas encontram dificuldade para construir um diálogo com a classe trabalhadora do século XXI. Classe que já não conta com os sindicatos de outrora e não tem a vida pulsante dos bairros operários do passado - estes, estão morrendo ou tomados pela miséria/criminalidade (+)
Ela também já não tem raízes ideológicas no catolicismo progressista. Assim sendo, a pergunta fundamental parece ser: como um partido pode ajudar a construir pertencimento de classe em tempos de precarização/uberização das relações de trabalho com trabalhadores neopentecostais?
Para fins de registro: acho que a campanha de Boulos em SP e Manuela em POA apontaram alguns caminhos para a construção desse diálogo, mas o movimento é muito embrionário. Além do que, não podemos esquecer que ambos foram derrotados.
Buscando conectar tudo: como construir uma frente ampla numa sociedade em processo de desindustrialização, com raízes ideológicas individualistas, uma maioria neoliberal no Congresso e sem um partido de esquerda com base social? Ao meu ver, não há condições históricas para tal.
Isso significa que devemos ficar parados vendo "a boiada passar"? Não. Há o que se fazer sim. Mas, antes de pensarmos em 'frente ampla', que foi construída na década de 1980, penso que o mais importante é revitalizar a sociedade civil, algo que foi construído na década de 70.
Por fim, defendo que 'frente ampla' é consequência de movimentos históricos mais importantes. O que fica em aberto é se conseguiremos construir fenômenos tão edificantes no séc. XXI. Penso que não somente podemos, como devemos fazer isso. É quase uma condição para sobrevivermos.

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22 Aug 20
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Com as últimas pesquisas Datafolha e o auxílio emergencial, muito se fala sobre esta possibilidade. Mas, há correspondência entre os 2 fenômenos? Quer entender melhor? Segue o 🧶
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13 May 20
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24 Apr 20
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