A Ford anunciou hoje que vai fechar suas fábricas no Brasil. Além de toda a questão econômica, há um grande impacto simbólico. É o fim de uma era.
Fio 🚗🚙🚕
A fábrica da Ford revolucionou o status social do automóvel. No início do século 20, o carro era um artigo de luxo: caro, elitista e complexo de fabricar. Poucos imaginavam que poderia ser massificado. Até que em 1908…
… Henry Ford apresentou seu modelo T, lançado como um veículo popular. Em um ano, 10.000 unidades circulavam nos EUA. Vinte anos depois, 15 milhões de unidades haviam sido vendidas mundo afora. Graças à gigantesca fábrica de Detroit e à linha de montagem, instalada em 1913.
A Ford reduziu drasticamente o custo de produção de carros. Abalou o setor de automóveis daquele início de século, então constituído por milhares de pequenas fábricas. Poucas conseguiram competir. As que restaram, tiveram que se especializar ou oferecer produtos de luxo.
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O fordismo criou também a ideia de uma classe operária "bem remunerada". A promessa de pagar 5 dólares por hora, valor maior que o dobro do que se pagava nos EUA, atraía multidões para a fábrica de Detroit. Mas a realidade era outra para quem conseguia o emprego...
… Quem conseguia o emprego na fábrica de Ford tinha que cumprir metas de desempenho um tanto severas. Fiscais acompanhavam de perto o trabalho e se a produtividade não fosse alcançada o salário era cortado ao meio. A mecanização das pessoas era brutal. +
No início do séc. 20, a gestão da Ford não era feita só por fiscais, mas também por uma equipe de vigilância que supervisionava a vida pessoal dos funcionários, ameaçava, atuava com violência e impedia a formação de sindicatos. Métodos autoritários sustentaram o sucesso. +
Depois de ganhar o mercado dos EUA, o fordismo ganhou o mundo. Vendedores da empresa eram contratados nos quatro cantos do planeta. Operavam como vendedores de enciclopédias, batendo de porta em porta. Fabricavam desejos e criavam novos dependentes. +
No Brasil, a primeira unidade da empresa foi inaugurada em 1920, em São Paulo. Era uma montadora de peças fabricadas nos EUA. De todo modo, foi a primeira montadora e teve papel central na difusão do automóvel no país. +
A história da indústria automobilística por aqui teve diversos capítulos. Vender carros foi um enorme sucesso nos últimos 100 anos, a despeito do fato de a entrega das promessas originárias (velocidade e distinção) se realizar cada vez menos. +
Essa é uma das maiores contradições do automóvel: a concretização das vantagens prometidas diminui à medida que o carro se universaliza. Quanto mais carros são comprados, menos eles entregam sua proposta de valor. Ainda assim, as vendas nunca caíram. +
Isso ocorreu graças ao sucesso do lobby automobilístico, uma ação coordenada de montadoras, indústria do petróleo e políticos de elite. No Brasil, esses grupos se articularam desde cedo em torno dos Automóveis Clube, que chegaram a ter mais poder que prefeituras. +
O lobby automobilístico atuou em três frentes, desde sempre:
1) Construir estradas, centrais para a existência do carro; 2) Desonerar a indústria, pelo argumento da geração de empregos; 3) Evitar a penalização de motoristas, já que os acidentes crescem na medida das frotas;
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A construção de estradas está no centro do modelo. Em cidades, o aumento de pistas permite abrigar mais carros, mas não resolve o trânsito - já que o espaço ocupado nunca é saciado. Estimula-se a demanda, mas a situação só piora. Foi o que vivemos nos últimos 100 anos. +
Os incentivos à indústria atravessaram diversos governos no Brasil. De JK a Bolsonaro, passando pelos generais ditadores, FHC, Lula, Dilma, Temer. Por empregar muita gente e gerar atividade econômica em cadeia, esse setor tem grande capacidade de chantagear governos. +
Mas a conta do carro só fecha se não forem contados aquilo que economistas chamam de "externalidades": em suma, tudo aquilo que uma atividade produz de impacto na sociedade. No caso do carro, as externalidades negativas são enormes. +
As desonerações à indústria automobilística retiram milhões de recursos públicos. Mas gastos muito maiores são gerados para toda a sociedade com acidentes, poluição sonora e do ar, tempo perdido no trânsito, manutenção de estradas, ocupação de espaço urbano, etc. +
Em 2015, o setor gerou 39 bilhões em tributos. Já os acidentes de trânsito geraram, no mesmo ano, um custo de 40 bilhões em gastos hospitalares, perda de produtividade e perdas materiais (sem contar as vidas perdidas, não monetizáveis), segundo estimativa feita por IPEA e PRF.
Como a economia que pauta o debate público se foca em poucos índices como PIB e taxa de emprego, as externalidades raramente são consideradas por gestores. Se fossem consideradas, o incentivo à indústria automobilística nunca se justificaria. +
A saída da Ford do Brasil se dá em momento de certa saturação do mercado, crise econômica duradoura e de operação mais bem estruturada da empresa na Argentina e no Uruguai. Tudo que não precisamos é de governos que busquem salvar essas empresas para elas continuarem. +
Como a economia que pauta o debate público se foca em poucos índices como PIB e taxa de emprego, as externalidades raramente são consideradas por gestores. Se fossem consideradas, o incentivo à indústria automobilística nunca se justificaria. +
A saída da Ford do Brasil se dá em momento de certa saturação do mercado, crise econômica duradoura e de operação mais bem estruturada da empresa na Argentina e no Uruguai. Tudo que não precisamos é de governos que busquem salvar essas empresas para elas continuarem. +
Não há que se esperar nada de bom do governo Bolsonaro, mas temos muito a melhorar nos próximos governos progressistas. Subsidiar a indústria automobilística é um tiro no pé: gera empregos e mantem a roda girando, mas a um custo social e econômico muito alto. +
A crise do Lulismo teve que ver com isso. O estímulo aos automóveis e ao espraiamento urbano via MCMV tornou as cidades inviáveis, e o cotidiano das pessoas pior em muitos sentidos. Essa crítica precisa ser feita e ela não invalida as qualidades dos governos petistas.
Nosso próximo círculo progressista precisará rever o lugar do automóvel - nas cidades, nas políticas públicas e na atividade econômica. Precisaremos fabricar trens, metrôs, bondes, bicicletas, ônibus elétricos e o que mais fomentar a economia – mas não carros. +
Quanto às fábricas de carro, o melhor mesmo é que fechem as portas ou mudem de atividade. O custo delas não compensa os benefícios que supostamente entregam. Henry Ford dizia: "um negócio que não produz nada além de dinheiro é um negócio pobre".
Escrevi mais detidamente sobre as contradições do automóvel nesse artigo na @piseagrama, onde abordo também as possibilidades (e a urgência) de pensarmos um mundo pós-automobilismo.
Nesse artigo na @revistapiaui abordo a questão da violência no trânsito, o enorme impacto na vida de milhões de pessoas, seu modo específico de funcionamento no Brasil e sua relação com a política (e o bolsonarismo).
Sobre a urgência em revermos as políticas urbanas e de mobilidade, sua relação com a questão climática e com a desigualdade social, publiquei esse artigo em junho do ano passado na @revistapiaui
Está permitido: ser contra a operação privada de um serviço essencial como o saneamento e, ao mesmo tempo, reconhecer que o modelo atual que opera no país tem limites importantes que precisam ser superados.
As coisas são complexas mesmo.
Um fio 👇
O modelo atual brasileiro vem da ditadura militar. As estatais de saneamento foram criadas no período. Seguiam o Plano Nacional de Saneamento e tinham financiamento do BNH.
Era uma estrutura centralizada, nacional. 👇
A CF 88 diferencia gestão dos recursos hídricos (responsabilidades de estados e União) e titularidade dos serviços de saneamento, que passaria a ser dos municípios. Essa leitura foi contestada por mais de 25 anos, até que, em 2013, o STF confirmou a responsabilidade municipal. 👇