Fiozinho para explicar esse artigo da Science sobre nanocorpos (estruturas engenheiradas por biotecnologia com função semelhante a de anticorpos) para bloquear o SARS-CoV-2 e suprimir o escape mutacional.
science.sciencemag.org/content/early/…
Primeiro, só para relembrar: imunização ativa é aquela oriunda da resposta a uma infecção ou obtida através da vacinação; imunização passiva é aquela proporcionada através do uso de anticorpos, que podem ser obtidos através do soro humano ou animal.
Essa última (passiva) é importante para os imunossuprimidos (ou, imunocomprometidos) que são as pessoas (incluindo crianças) para quem as vacinas algumas vezes não são efetivas.
Neste caso, anticorpos neutralizantes ou moléculas relacionadas oferecem, portanto, grande potencial como agentes antivirais de ação imediata e direta. É o caso, poe exemplo, do plasma convalescente!
No entanto, eles não podem ser produzidos facilmente e economicamente em quantidades suficientes para aplicação em massa, e não podem ser facilmente modificados para incluir múltiplas especificidades sem grandes custos de rendimento e qualidade.
A grande maioria dos mamíferos apresenta seus anticorpos constituídos de cadeias leves e pesadas. As regiões varáveis dessas duas cadeias é que garantem uma alta gama de respostas aos diferentes antígenos (organismos estranhos ao corpo). Explicações aqui mundoeducacao.uol.com.br/biologia/antic…
Agora, te conto que há um grupo de mamíferos cujos anticorpos são constituídos apenas de cadeias pesadas. São os camelídeos. E sim, eles conseguem fazer variabilidade de resposta! Um viva à pesquisa básica!
Verificou-se que os anticorpos de camelídeos de cadeia pesada são tão específicos quanto um anticorpo normal e, em alguns casos, são mais robustos. Além disso, eles são facilmente isolados, permitindo que sejam cultivados ex vivo em grandes concentrações.
O tamanho menor e o domínio único tornam esses anticorpos mais fáceis de transformar células bacterianas para produção em massa, tornando-os ideais para fins de pesquisa. Essa transformação bacteriana é uma das bases da Biotecnologia! Aqui o estudo: link.springer.com/article/10.100…
Então, esses domínios variáveis de anticorpos apenas em cadeias pesadas, também conhecidos como nanocorpos, oferecem uma oportunidade de produzir rapidamente agentes antivirais para a imunização passiva, tema desse artigo da Science.
Além na fácil expansão no sistema bacteriano, os nanocorpos têm propriedades bioquímicas favoráveis, incluindo alta termoestabilidade e penetração de tecidos profundos. Legal, né? E poderia ser aplicado à COVID-19?
Bom, vamos relembrar que a proteína Spike do SARS-CoV-2 liga-se ao receptor celular ACE2, o que permite sua fusão com a membrana das nossas células. Explico isso tudo aqui nesse texto: redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/07/06/a-p…
A proteína Spike é trimérica, ou seja, possui 3 domínios proteicos. Nas proteínas, os domínios são as partes responsáveis pelas funções, como, por exemplo, a proteína se ligar a DNA, ou fazer uma reação de hidrólise ou, no caso da Spike, se ligar ao receptor ACE2, função do RBD!
Agora, vejam que interessante: a Spike assume duas conformações (dobraduras na estrutura) principais: uma em que o RBD está "escondido" e outra em que ele está exposto, tanto para se ligar na ACE2, quanto para sofrer a neutralização pelos anticorpos (news-medical.net/whitepaper/202…)
Ocorre que uns poucos anticorpos neutralizantes são também capazes de se ligar na Spike naquela conformação onde o RBD não está exposto e isso faz com que a proteína não consiga mais fazer a mudança de conformação. Voilá, RBD indisponível!
Aqui, vem o "tcham" do estudo: os pesquisadores desenvolveram nanocorpos multivalentes (a partir de monovalentes isolados de camelo) com capacidade de neutralização 100X maior do que os monovalentes. E tem mais!
Quando o vírus faz aquela mudança de conformação, ele é capaz de escapar da vigilância dos anticorpos e sofrer mutações (é uma tentativa de mudança de estratégia). Com os nanocorpos, os vírus não conseguiram escapar e não fizeram mutações, comprovado em cultura de células.
Conclusão: os nanocorpos multivalentes têm aplicações clínicas potenciais devido ao aumento da atividade neutralizante e à proteção contra o rápido surgimento de mutantes de escape. E viva a ciência!

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6 Jan
Pessoal, vou fazer um fio/texto assim que possível, mas não podia deixar de compartilhar essa ótima notícia, "quentinha" da Science de hoje! De 188 pacientes com COVID analisados, células B de memória foram mais abundantes aos 6 meses do que em 1 mês após o início dos sintomas.
E IgG presentes mesmo após 6 meses!
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3 Jan
Fiz esse fio para ajudar nos esclarecimentos desse artigo muito interessante da Science Advances sobre os fluxos de ar no interior dos automóveis e a transmissibilidade de doenças respiratórias.
advances.sciencemag.org/content/7/1/ea…
Já sabemos que a transmissão de doenças respiratórias altamente infecciosas, incluindo a COVID-19, é facilitada pelo transporte de gotículas exaladas e aerossóis que podem permanecer suspensos no ar por longos períodos de tempo.
Nós utilizamos automóveis para nos locomovermos, e muitas vezes compartilhamos com pessoas que não convivem conosco. É o caso dos táxis, carros por aplicativo e caronas. O interior de um carro cria um microclima que pode potencialmente aumentar a transmissão de patógenos.
Read 23 tweets
30 Dec 20
As perguntas que não querem calar quanto a COVID-19 e a tão sonhada imunidade: “quanto tempo estaremos protegidos do vírus através da imunização?” e “quem pegou a doença já está imune?” Siga o fio feito em parceria com a @mellziland! :)
Na biologia, a imunização corresponde à aquisição de proteção a um determinado agente infeccioso, criando uma resistência à doença causada por esse agente, através da estimulação de uma resposta imune!
Essa resposta pode ser dividida em 1) inata (não específica, também conhecida como nossa primeira linha de defesa) ou 2) adquirida (adaptativa, mais específica, acionada para se somar à inata) se houver necessidade de resposta mais específica.
Read 39 tweets
29 Oct 20
Ainda sobre a nitazoxanida, reportagem na Science de hoje. E, apesar de toda essa palhaçada e a vergonha mundial que estamos passando, eu quero agradecer aos colegas cientistas brasileiros sérios e a meus colegas da @analise_covid19, que analisaram o referido estudo (1)
e colocaram os "pingos nos is" sobre como se faz ciência de qualidade aqui no Brasil. Ciência exige método e modéstia, pois o conhecimento é transitório e relativo. Desconfie de alguém que diz ter certeza sobre A ou B. O nome disso é charlatanismo. (2)
Pontos importantes da reportagem sobre a avaliação clínica do fármaco:

"Uma carga viral mais baixa tem pouco significado se não faz o paciente se sentir melhor e é improvável que reduza a transmissão da doença 10 dias após o início dos sintomas. (3)
Read 9 tweets
14 Oct 20
Reportagem da Science feita a partir de artigos da Nature e do New England a respeito da expressão de genes identificados em relação à COVID-19 grave (siga o fio...)
1. IFNAR2, que codifica um receptor para interferon, uma molécula que ativa as defesas imunológicas quando um vírus invade uma célula. "Uma variante do IFNAR2 encontrada em um em cada quatro europeus aumentou o risco de COVID-19 grave em 30%."
2. OAS, codificam proteínas que ativam uma enzima que quebra o RNA viral. Uma mudança de expressão nesses genes pode prejudicar essa ativação, permitindo que o vírus "faça a festa".
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