O (Neo) Xamanismo vem se popularizando atualmente entre crenças new age e como consequência perdendo seu real significado dentro da sociedade.
No entanto, é parte fundamental da cultura e espiritualidade de muitos povos indígenas.
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O xamanismo é descrito em ‘Shamanism, Archaic Techniques of Ecstasy’ como:
“Um sistema antigo de crenças e práticas que tentam organizar e explicar a inter-relação entre o cosmos, a natureza e o homem.”
(Mircea Eliade)
O Xamanismo tem sido praticado por muitas culturas e historicamente abrange milhares de gerações, desde o primeiro anel de fogo até os nossos dias.
A palavra “xamã” deriva da palavra tunguso-manchu “saman”.
Os povos Tungúsicos eram pastores de renas na região do Lago Baikal, no sul da Rússia.
A palavra deriva de seu verbo ‘sa’ que significa “saber”.
📷: Mulheres do grupo étnico Evenque, povo Tungúsico.
O termo ‘xamã’ tornou-se popular graças ao antropólogo russo Sergei Mikhailovich Shirokogorov, um dos primeiros exploradores ocidentais ao leste da Sibéria e do nordeste da China.
Em ‘Psychomental Complex of the Tungus’ (1935), Shirokogorov escreveu:
“Nas línguas tungúsicas, este termo refere-se a pessoas de ambos os sexos que dominavam espíritos, que à sua vontade podem introduzir esses espíritos em si mesmos e usar seu poder sobre os espíritos em seus próprios interesses, especialmente ajudando pessoas que sofrem com eles.”
Costumo dizer que o xamanismo não é tipo McDonald’s, pois é linguística e localmente específico, portanto, existem vários rituais e cosmologias.
Vamos focar aqui no papel e nas funções generalizadas, por assim dizer, do xamã nas comunidades indígenas tradicionais das Américas.
A organização do mundo do xamã é dividido.
Tanto o mundo superior quanto o inferior são feitos de várias camadas, que variam de cultura para cultura e refletem uma representação de sua cosmologia.
Arte: Shamanism UK
Geralmente, o mundo superior é considerado o lar de ancestrais, espíritos benéficos, luz e vida.
O submundo é identificado como o lugar de espíritos ‘malévolos’, perigo e morte, mas também honra e respeito.
A ligação entre eles é o mundo do meio, ou campo de percepção comum.
O lugar onde vive o observador, a comunidade ou o clã.
É o centro pelo qual a árvore da vida, ou axis mundi, passa para ligar os três mundos e suas várias camadas. Podendo ser um elemento no ambiente da comunidade, como uma árvore, montanha ou uma caverna, exclusiva desse grupo.
A visão de mundo do xamã é baseada na observação de sete pontos do universo espacial e sua repetição infinita.
Eles são os quatro pontos cardeais, o zênite, o nadir e o centro, ou intersecção de todos os pontos onde o observador se encontra.
Esta cosmovisão universal é baseada no continuum observável do sol, da lua e das estrelas viajando pelos mundos superior e inferior.
Os corpos celestes cruzam o mundo visível durante o dia em um caminho de leste a oeste.
Eles são então logicamente percebidos para continuar seu curso ao pôr do sol de oeste para leste através do submundo à noite, para iniciar um novo ciclo novamente no amanhecer seguinte.
Para cada cultura individual, essa percepção está na raiz de uma certeza inabalável de que sua localização espacial e suas crenças são o que os diferencia de outros grupos humanos.
Além disso, estabelece a singularidade absoluta de sua comunidade e crenças.
O mundo em multicamadas implica comunicação e é baseado na crença de que cada forma de vida dentro do campo da percepção comum tem sua contraparte nos “outros” mundos.
O portal entre o mundo do meio e os outros é a mente humana.
Por meio de exercícios de aprendizado, iniciações e rituais, o xamã pode vagar por esses mundos superiores e inferiores.
Mas, o que é um xamã e como eles se comunicam e entram nas várias camadas de seus mundos?
De acordo com as crenças xamânicas de povos indígenas, esses mundos escalonados correspondem a uma micro-cosmovisão, consistindo em uma sequência de dimensões do próprio mundo interior do indivíduo, ou escala interna da consciência humana.
Os xamãs afirmam que em suas visões ou transes, muitas vezes induzidas por substâncias naturais psicoativas, eles penetram nos diferentes estratos do outro mundo como se por meio de aberturas estreitas.
Arte: Pablo Amaringo
O nome é, por definição, neutro em termos de gênero, pois se aplica tanto a homens quanto a mulheres.
Seus respectivos rituais e tarefas de iniciação, entretanto, são específicos de gênero, uma vez que respondem a diversas particularidades de acordo com a cultura.
Eles podem, porém, agir em conjunto para situações particulares onde ambos são chamados para afastar divindades malévolas tanto masculinas quanto femininas, ou neutras em questões de gênero.
O papel do xamã é desempenhado por indivíduos que desempenham uma série de funções em suas comunidades.
Os xamãs curam e dirigem orações, rituais de puberdade e cerimônias importantes para os ciclos de vida da comunidade e seus indivíduos.
📷: Pajé Txanã Ixã Huni Kuin.
Eles são os guardiões das genealogias da comunidade, recitam ‘mitos’, dançam e cantam durante cerimônias. Eles também tem conhecimento profundo da natureza e influenciam as decisões sobre o plantio e a colheita das safras, a caça e a conservação de recursos.
Sua função como mediadores em situações de conflito social é muito importante. No entanto, os xamãs são, em primeiro lugar, mediadores entre este mundo e o mundo ‘sobrenatural’.
📷: Don Jose Joaquin Pineda, comunidade Yachak.
De acordo com a cultura e comunidade, a posição do xamã pode ser herdada ou revelada em uma visão ou sonho, marcas de nascença, ou vocação.
O aprendizado sob a orientação de um ancião praticante, no entanto, costuma levar anos e sofrimentos extremos que terminam com a iniciação.
Por exemplo, os Kogi requerem um ciclo duplo de nove anos cada antes da iniciação.
É uma regra praticamente universal que o neófito deve morrer simbolicamente para depois renascer e assim ter sua permissão para exercer a função.
📷: Anciões Kogi; Serra Nevada, Colômbia.
Nas sociedades indígenas, o culto aos ancestrais é um constituinte chave na vida das pessoas. O xamã, mediante solicitação, pode auxiliar na comunicação com os ancestrais, mas é o descendente que se dirige aos próprios antepassados para interceder na resolução do conflito.
O denominador comum para a adoração aos ancestrais é fundamentado no respeito popular e na afeição devida aos ancestrais no “outro” mundo, onde eles intercedem com divindades, ou com outros ancestrais por assuntos inacabados nesta vida.
Os descendentes têm consciência de que são um elo na cadeia da vida, dos avós aos netos, passando pelos pais. Em alguns casos, o sepultamento de um ancestral abaixo do piso da casa, ou próximo a ela, significa que o ancestral ainda estava “socialmente vivo”.
A adoração dos ancestrais é baseada em uma lógica antiquíssima, mas inevitável: Nenhum ancestral = Nenhum descendente = Nenhuma vida.
A principal função comunal do xamã envolve estabelecer e manter contatos com o mundo ‘sobrenatural’ por meio do estado alterado de consciência que variam entre as culturas e são alcançados, entre outros meios, por meio de meditação profunda, privação sensorial, visões, etc.
Na maior parte das Américas, entretanto, o ‘êxtase’ é obtido com frequência por meio de plantas psicotrópicas.
O mundo vegetal é considerado um presente dos deuses e/ou entidades para os alimentos e plantas medicinais de que depende a sobrevivência humana.
Arte: Pablo Amaringo
Entre as plantas enteógenas usadas por comunidades indígenas nas Américas, existem diferentes espécies de videiras silvestres do gênero Banisteriopsis caapi, comumente chamadas de ayahuasca ou yaje, também chamadas de “videira da alma”
Diversas espécies de estramônio (Datura) e glória da manhã (Ipomea violacea), sementes, cogumelos (Psilocybe e outros), e a casca de várias espécies de árvores do gênero Virola.
Essas plantas podem ser usadas individualmente ou misturadas de acordo com a receita de um xamã.
Nas Américas, está intimamente relacionado com o chamado “vôo xamânico”, a sensação de dissociação durante a qual o ch’ulel ou alma do xamã, como os Maias a chamam, acredita-se que se separa de seu corpo e penetra outras dimensões do cosmos.
Arte: ‘Ch’ulel’; Antún Kojtom.
Nesse momento, o xamã adquirirá seus totens familiares, o espírito dos animais se tornarão auxiliares; os mais comuns entre eles são o jaguar, a águia e a serpente.
Arte: Tesora Sacred Travel.
Durante esses “voos”, o xamã invoca espíritos, por vezes divindades, e ancestrais para intermediar sobre eventos presentes e futuros, aprende novos encantos, cantos e danças, ou busca por curas para doenças e enfermidades.
A ideia de outras dimensões, de “outros mundos”, como moradas dos espíritos dos mortos ou de seres “sobrenaturais” baseia-se na experiência da viagem extática do xamã.
A imagem que o xamã forma dessas dimensões e a descrição que faz delas dependem do processo projetivo de sua personalidade psicológica e da experiência como praticante, bem como da tradição cultural e religiosa da comunidade e de seu ambiente.
Arte: Barbara Navarro.
O que é conhecido, portanto, é mais importante do que o que é visto, uma vez que apenas um membro da comunidade que compartilha totalmente uma composição mental e emocional com aquele grupo pode compreender o significado dos símbolos e arquétipos que cercam o mundo xamânico.
Entre os numerosos temas representados em artefatos de cerâmica e metal pré-colombianos das culturas da América Central, o mais representativo é o pássaro de uma ou duas cabeças representando o vôo xamânico.
Foto: Museo Del Oro Precolombino, San José, Costa Rica.
A ave é mostrada com asas e cauda abertas. Geralmente é feita de metal, embora também seja bem representado em cerâmica.
O pássaro pode ser o condor ou urubu-rei, símbolo muito sagrado nas culturas andinas, ou o gavião.
Foto: ‘Cerâmica Nazca representando Condor’.
Nas crenças de muitas comunidades amazônicas, o gavião-tesoura figura como a personificação ornitomórfica do xamã, ligada a muitas tradições que remetem à etno-história e à origem de certos ritos.
Para os U’wa, o gavião é uma ave xamânica de grande importância. Em suas tradições, eram os xamãs-aves que atuavam como guias para os ancestrais em seu passado pré-histórico, para trazê-los de terras distantes até sua localização atua
Foto: Benito Corbería, cacique U’wa.
Entre as culturas Maias os indivíduos são dotados do espírito de um companheiro animal, chamado de nawal.
Com a ajuda do xamã, o chuchqajaw em Maya-Quichè, um nawal é cerimonialmente selecionado para um indivíduo em cada etapa importante de sua vida, da concepção à morte.
O nawal é entendido como uma força vital essencial, um alter ego, concedido aos humanos e ainda mantido em sua passagem.
Um companheiro espiritual se identifica com o animal, selecionado para habilidades específicas pelo xamã.
Foto: Nawals >astecas<, só pra ilustrar.
Essas habilidades podem ser velocidade, visão, agilidade, furtividade, inteligência, poder, graça, ferocidade ou outros atributos, e abrangem espécies de mosquitos a onças nas Américas.
O nawal é específico e pode ter atribuições diferentes com outros grupos linguísticos maias.
A função primordial do companheiro espiritual de um indivíduo, entretanto, permanece a mesma. O nawal de um ser humano deve ser cuidado com orações e cerimônias em momentos de dedicação, pois acredita-se que a vida do espírito companheiro coexiste intimamente com a da pessoa.
Os auxiliares do xamã no mundo animal podem ser classificados em várias categorias. A saber, aqueles que ajudam o xamã a “voar”, que nas Américas, além do gavião incluem a harpia, o urubu, entre outras aves.
As tarefas noturnas são principalmente confiadas a corujas e morcegos.
Há também os que ajudam o xamã a diagnosticar e curar doenças, executores e aqueles que o servem de mensageiros. Os animais executores cumprem a ordem de um xamã para atacar um inimigo, perto ou longe.
Eles costumam ser o jaguar, cobras venenosas e insetos.
Entre os mensageiros xamânicos estão os beija-flores, alguns pássaros “falantes”, como araras ou papagaios, além de libélulas, abelhas e borboletas.
Os animais selecionados são dedicados a tarefas específicas relacionadas à sua forma, cor e comportamento.
O que se vê não é o animal no sentido zoológico, mas princípios e qualidades considerados pelos xamãs como personificados por esses animais ou animado pelos xamãs.
Esses princípios ou qualidades podem ser vôo, velocidade, nitidez de visão ou audição, capacidade de sofrer metamorfose, camuflar, simular a morte ou viver em dois mundos, como sapos, tartarugas e outros anfíbios.
Ao longo da história, as sociedades evoluíram e se tornaram mais complexas, enquanto os símbolos e arquétipos seculares e religiosos também evoluíram como portadores de novas realidades.
O xamanismo também foi e é muito ameaçado pela globalização e apropriação cultural.
A demografia desenfreada, com ciência e tecnologia entre outros fatores, também levou à fragmentação das sociedades, identidades e crenças, muitas vezes deixando um vazio intransponível entre as comunidades.
O xamanismo, tão antigo quanto a humanidade, coagido pela história a se curvar a novas verdades e realidades, ainda desafia o teste do tempo e da globalização.
Bom, pra quem me acompanha ou conhece sabe o quanto xamanismo é meu aspecto religioso favorito, e eu recomendo muito que estudem no ponto de vista antropológico, mas, muito cuidado com o que vocês veem e leem na internet, hoje em dia a apropriação cultural dessa prática é forte.
E não é xamanismo de verdade, como disse no texto, pra se tornar um xamã você necessita de uma série de especificidades, e principalmente, é algo fechado, a não ser que te iniciem, não caiam no conto de “cursos de xamanismo”, principalmente se feitos por não-indígenas
Esse texto já estava no meu Medium faz um tempo, mas só hoje deixei a preguiça de lado pra postar.
Na Amazônia e Andes o xamanismo também é intrinsecamente ligado ao vegetalismo, o ato de curar por meio dos vegetais, plantas, etc, que por si só estão ligados com cânticos auxiliadores chamados de ‘Ícaros’, algo que falei sobre aqui 👇
Infelizmente, parece que o #Enem2020 não vai ser adiado, o que é lastimável, mas, tendo isso em mente, que tal umas enquetes com questões de vestibulares passados sobre civilizações pré-colombianas?
Vamos 👇
1- Três dessas civilizações têm a região que ocuparam identificada no mapa.
Assinale a alternativa que associa corretamente o número ao povo que ali se estabeleceu.
Tatuagens da Senhora de Cao, a primeira mulher governante da América pré-colombiana.
A pele do antebraço, mãos, tornozelos e dedos dos pés mostram, com total clareza, desenhos de cobras, aranhas, e caranguejos, animais que o simbolismo mochica relacionava com o divino.
A senhora de Cao ou Dama de Cao é o nome dado a uma mulher da cultura Moche descoberta em 2006 pelo arqueólogo Régulo Franco no sítio arqueológico El Brujo, cerca de 45 km ao norte de Trujillo, no Departamento de La Libertad.
Antes da descoberta, pensava-se que apenas homens ocupavam cargos importantes no antigo Peru.
Acredita-se que a senhora tinha status de governante na sociedade teocrática do vale do rio Chicama e era considerada um personagem quase divino.
Desabafo: Não aguento mais ouvir/ver que indígenas pré-colombianos do atual território brasileiro eram “primitivos”, “preguiçosos”, “pouco desenvolvidos”, quase que apenas “caçadores-coletores” e também comparações com outras civilizações de Abya Yala (Américas)
Faz tempo que to querendo fazer uma thread sobre arqueologia brasileira pra desmentir esses mitos que estão (muito) longe de serem verdades, eu só peço um pouquinho mais de paciência porque to na busca por um pc/laptop pra poder expandir pesquisas e trazer um material melhor
Além desse tem outros temas e projetos que também to planejando faz um tempo mas que apenas com o celular fica difícil de botar eles em prática, mas é isso, se tudo der certo jaja os conteúdos por aqui devem dar uma melhorada 🙏❤️
A arte de organizar, colocar ou construir monumentos e edifícios em locais específicos e a de divinação com elementos terrestres.
Segue o fio 🧶👇
Para muitas culturas, as práticas geomânticas envolviam o contato direto com as energias da Terra, alinhamentos astronômicos, geometria, espiritualidade, montanhas, poços e fontes sagrados, etc, como formas de compreender, viver e manipular o ambiente.
No entanto, a geomancia e a arqueologia apresentam alguns debates e pontos de vista diferentes sobre o intuito da localização de monumentos.
Mas aqui, como sabem, além de focarmos na arqueologia, também é um espaço pra tradições espirituais.
Você pode achar que os anticoncepcionais são produtos recentes da ciência ocidental moderna, mas curandeiros e parteiras indígenas nas Américas usaram o conhecimento botânico para fornecer abortivos às mulheres muito antes do contato com os europeus.
“Embora as evidências históricas restantes nem sempre revelem a natureza das substâncias usadas pelas curandeiras, sabemos que alguns dos primeiros remédios vegetais tinham propriedades ‘psicodélicas’ e anticoncepcionais ou causadoras de aborto.
O conhecimento cuidadosamente preservado e escondido das mulheres sobre essas plantas tem sido contestado na lei e na medicina, tornando ainda mais importante olharmos para trás e ver como as mulheres participaram da proteção de informações sobre remédios botânicos no passado.”
📍: Óbidos, região do Baixo Amazonas, rio Tapajós, estado do Pará, Brasil. 🇧🇷
🏛: Museu Nacional do Rio de Janeiro, Brasil. 🇧🇷
Os muiraquitãs, comuns em forma de rãs, mas também de aves, peixes e outros animais, eram fabricados quase sempre em pedras verdes, como jade, nefrita e amazonita.
Utilizados como pendentes, aparecem também adornando toucados femininos de estatuetas em cerâmica de Santarém.
Envoltos em tradições, os muiraquitãs são considerados poderosos amuletos contra malefícios.
Ao que tudo indica, Santarém foi o seu centro de produção, embora haja uma dispersão considerável de peças desse tipo por causa das extensas redes de trocas e de difusão ideológica.